Desmontar o Óbvio & Cuidar da Intuição

Para que uma conversa seja eficaz, rica e clara há que não ceder à tentação de assumir o que consideramos ser óbvio; tanto para nós como para o outro. Se a premissa de onde partimos parece ser uma obviedade isso apenas reforça a importância de a conhecermos mais e melhor e, para além disso, de a podermos agir nas nossas conversas.

Existe mais do que uma razão para não nos entregarmos a este exercício. A primeira prende-se com o significado de “óbvio”. A obviedade é um julgamento que fazemos sobre o que achamos ter percebido de algo ou de alguém. Pode ser também a presunção de sabermos o que outro terá entendido. Como todos os juízos, é um atalho, um economizador de tempo e de energia. Porém, a utilização da obviedade não se pode explicar apenas pela sua dimensão económica.

Ceder ao óbvio pode também ter que ver com uma crença na inteligência dos outros, o que alguns chamarão de ingenuidade. Pode ainda ser por querermos validar ou verificar essa inteligência.

Podemos, ao contrário, querer tornar a nossa inteligência evidente para o outro, ao assumirmos que algo que não foi entendido é para nós “óbvio”. Na mesma linha, pode servir para nos tornar “misteriosos” aos olhos do outro. Os interesses ocultos podem também alimentar o uso da obviedade, tanto os nossos, quando os queremos esconder, como quando intuímos ou percebemos que podem existir no outro.

Todas estas razões, porventura com a excepção da primeira, mais primária, têm algo em comum: fomentam a falta de clareza. Podemos assim colocar a hipótese: a obviedade produz obscuridade.

Por exemplo, ao conduzir, apesar de ser óbvio para nós que queremos virar à direita, ao não “fazer pisca” estaremos a correr sérios riscos. Se numa conversa não tornarmos público aquilo que é privado, interno e óbvio, se não nos tornarmos previsíveis, sem a conotação negativa da palavra, que riscos estaremos a correr? O que estaremos a perder e a ganhar?

Claro que estas dinâmicas são influenciadas pelo contexto, pela interpretação que dele fazemos, pelo(s) nosso(s) interlocutor(es) e, consequentemente, pelos juízos que construímos acerca deles e eles a nosso respeito.

A ligação entre a obviedade e a intuição

Hoje parece existir a tendência para valorizar a intuição acima do conhecimento ou da sabedoria. Parece ser comum deixarmo-nos seduzir por uma ideia “brilhante” sem nos ocuparmos com o seu fundamento e sem nos dedicarmos a reflectir de forma crítica e idealmente partilhada. Esse tipo de trabalho parece tirar o brilho às ideias, obrigando a navegar para fora do campo do entretenimento e da “intuição”; como se a reflexão e a profundidade fossem inimigas do interesse.

O que será isso da intuição? O dicionário diz-nos que é “percepção instintiva”, “conhecimento imediato” e “pressentimento da verdade”. Intuir parece ser, então, algo que deduzimos ou concluímos por pressentimento. Portanto, é algo que sentimos antes de sentirmos. Estes significados parecem afastar-se dos ligados à origem latina da palavra. Intuir originalmente significava “olhar para”, “considerar”, “contemplar” e “examinar”.

Arriscamos uma hipótese: intuição é a capacidade de prever, de antever algo que ainda não se passou ou está a passar-se de forma não manifesta. Não será difícil, por isso, associarmos intuição ao pensamento mágico. Mas, se considerarmos intuição como previsão/antevisão, não tem de ser a única fonte de análise ou compreensão.

Félix Ravaisson, filósofo francês, no seu ensaio “Sobre o Hábito” deixa-nos a ideia de que intuir é a incapacidade de distinguir o que somos daquilo que pensamos.

A inteligência obscura que através do hábito substitui a reflexão, esta inteligência imediata onde sujeito e objecto se confundem, é uma intuição real, onde o real e o ideal, ser e pensamento estão fundidos.
— Félix Ravaisson

Usando a dedução, a lógica, a memória, a experiência e se a estes juntarmos os afectos então, cremos, a intuição estará mais suportada na reflexão e menos na magia, sem perder a sua componente, por vezes, inexplicável e, portanto, o seu encanto. Por exemplo, a famosa personagem criada pelo Sir Arthur Conan Doyle, Sherlock Holmes, encanta pelos seus dotes que por vezes parecem ser mágicos mas que, na verdade, são resultado de capacidades dedutivas e reflexivas sofisticadas. Aliás, perguntamo-nos se não terá sido essa uma das razões para Conan Doyle criar Sherlock. Mostrar-nos que o inexplicável, com uma boa dose de inteligência e dedicação, pode ser compreendido sem recurso à magia.

Acreditamos que será a capacidade de nos mantermos enamorados pela fundamentação, pela ligação e pela contextualização das nossas reflexões que lhes dará corpulência, riqueza e que, como consequência, alimentará a qualidade das nossas conversas.

Pelos vistos as ideias de Sócrates, o grego, não vingaram tanto como se julga. O conhecimento e a consciência não invalidam nem diminuem a intuição; porventura potencia-la-ão. Mas isso implicará deixar de evocar a intuição como forma de camuflar a preguiça.

 
João Sevilhano

Partner, Strategy & Innovation @ Way Beyond.

https://joaosevilhano.medium.com/
Anterior
Anterior

Por uma nova definição de trabalho

Próximo
Próximo

A ociosidade, na acepção original do termo, não é ficar parado: Entrevista de João Sevilhano ao Leiria Económica