Se não sabe para que é que pergunta?

Fotografia pela própria Joana Marques.

Fotografia pela própria Joana Marques.

No dia da comemoração do 100.º aniversário do nascimento de Amália Rodrigues, uma repórter perguntou a Jorge Fernando, que a propósito do centenário reformulou uma versão gravada em 1996 de “Ai Vida” (esta é a nova versão), se achava que valia a pena manter viva a memória da fadista. Fiz stop e voltei atrás - maravilhas da tecnologia?! - para me certificar de que tinha ouvido bem. Ouvi.

Zangou-me aquela pergunta, para mim, desprovida de sentido, pouco gentil para com a vida e obra da Amália e para com o trabalho e a amizade que Jorge Fernando tinha com Amália. Tão pouco respeitadora do contributo de ambos para a nossa identidade e memória colectivas e do legado de ambos para a língua portuguesa, para o fado, para o que dizemos à boca cheia que é uma parte de ser português. Sim, é para lembrar e, sim, é para não esquecer! O que há-de ser de nós só com o que acontece aqui-e-agora? O que tem sido feito do tempo profundo, do tempo longo?

Mas bom, para que terá a repórter feito uma pergunta: 1) para a qual a resposta era mais do que óbvia; 2) cuja resposta “nunca” seria nem poderia ser “Não, acho que não, vamos queimar os discos e os arquivos todos. Não lembraremos mais Amália!”; 3) “Acha? Claro que não. Eu não tinha era mais o que fazer e, olhe, há entreténs piores; 4) entre um rol de outras (im)possíveis e absurdas respostas.

Agora, pobre repórter que, enfim, ali em directo, talvez também se tenha envergonhado assim que percebeu que aquela era uma pergunta de “pé de microfone”, como dizia uma pessoa que conheci há muitos anos, isto é, uma pergunta para “encher chouriços”, para fazer quando não vem mais nenhuma ideia à cabeça. Uma pergunta de merda.

E não fazemos, todos nós, tantas vezes, perguntas com cheiro semelhante? Fazemos, pois!

Pois, então, se não sabemos, para que é que perguntamos? Inquietam-me dois aspectos distintos na pergunta “Se não sabe PARA QUE é que pergunta”?

O primeiro, e derradeiro, no caso da primeira pergunta deste artigo; se não sabemos o que perguntar (ou o que dizer), para que não: 1) permanecemos calados até sabermos; 2) escutamos, apenas, e pode ser que descubramos o que queremos realmente saber; 3) concluímos a “entrevista” e… fim.

O segundo é relacionado com a prática do coaching e com um percurso de aprendizagem perfeitamente transformador(1) que me ajudou a ver para lá “do que o sol ilumina”, por meio da conversação, das virtudes das palavras e das necessárias distinções e, acima de tudo, da descoberta de que perguntar, mais do que satisfazer a minha curiosidade, pode (deve, no que se refere a processos de coaching) servir para ajudar o outro a questionar-se a si mesmo, a descobrir-se, a ter a coragem bastante para "mudar o observador", que é como quem diz, ser humilde, curioso e cândido para aceitar os infinitos pontos de vista que podem existir sobre uma determinada realidade, questionando-se, assim, sobre se a sua própria realidade é real e se é a única.

Neste aspecto, Rilke, em Cartas a um Jovem Poeta, é o “maior”. Pelo menos, para mim, que o li como se as cartas trocadas entre ele e Franz Xaver Kappus (o jovem poeta) fossem, nas entrelinhas, princípios e aprendizagens para uma jovem coach. Consigo entrevê-los em várias passagens:

Pergunta se os seus versos são bons. Pergunta-me a mim. Antes perguntou a outros. Envia-os para periódicos. Compara-os com outros poemas, e inquieta-se quando certas redacções rejeitam as suas tentativas. (…) O Senhor olha para fora, e é sobretudo isso que agora não deveria fazer. (…) Só há um meio. Entre em si mesmo. Investigue o fundamento que o chama a escrever; ponha à prova se ele lança raizes até ao lugar mais profundo do seu coração, admita se teria de morrer caso lhe fosse vedado escrever. Sobretudo isto: na mais silenciosa hora da sua noite, pergunte a si mesmo: ‘tenho’ de escrever? Escave dentro de si à procura de uma resposta profunda. E se esta houver de soar afirmativa, se lhe for permitido encarar essa pergunta séria com um forte e simples “Tenho”, então construa a sua vida segundo essa necessidade; a sua vida até ao âmago da hora mais indiferente e limitada, terá de se tornar um sinal e um testemunho para esse ímpeto. De seguida aproxime-se da natureza. Tente então, como um primeiro homem, dizer o que vê e experimenta e ama e perde. Não escreva poemas de amor; evite de início aquelas formas que são demasiado correntes e comuns: são as mais difíceis, pois é precisa uma força grande, amadurecida, para dar algo de pessoal num terreno em que se acumulam tradições boas e, em parte brilhantes. Fuja, pois, dos motivos grais para aqueles que lhe oferece o seu próprio quotidiano; retrate as suas tristezas e desejos, os pensamentos passageiros e a fé numa qualquer beleza - retrate tudo isso com sinceridade íntima, serena, modesta, e use para se exprimir as coisas do seu ambiente, as imagens dos seus sonhos e os objectos da sua recordação. Se o seu quotidiano lhe parece pobre, não o acuse; acuse-se a si, diga a si mesmo que não é poeta bastante para convocar as riquezas dele (…) O seu acontecer mais interior merece todo o seu amor, é nele que tem de trabalhar, seja de que modo for.
— Rainer Maria Rilke

Vejo aqui o convite a procurar em si mesmo, crendo que cada um de nós reúne todos os recursos necessários; perguntas poderosas (algumas um tanto extremadas, porém) - admita se teria de morrer caso lhe fosse vedado escrever; a convicção de que cada um é capaz de construir o seu próprio caminho que é diferente do dos outros, com linguagem de sentido e significados próprios; a capacidade de aprender ou reconhecer a autoria, a responsabilidade do que se é, do que se sente, faz, diz; o apelo ao comprometimento consigo mesmo e com a(s) acção/acções definidas; o desvio de linguagens e formatos comuns “de outros”, já gastos ou que não servem ao próprio; o reconhecimento da canduranecessária a qualquer encontro consigo mesmo.

E se lhe for inquietante e tormentoso pensar na infância e no que de simples e tranquilo com ela associa, porque já não consegue crer em Deus que nela parece aparecer por todo o lado, então pergunte a si mesmo, caro Senhor Kappus, se perdeu realmente Deus? Não será antes que não chegou nunca a possuí-lo? Pois quando havia isso de ter sido? Acredita que uma criança pode tê-lo, a ele que os homens só com esforço carregam e cujo peso oprime os anciãos? Acredita que quem realmente o tem poderia perdê-lo como se fosse um pedrita, ou não será que também acha que quem o tivesse somente por ele poderia ser perdido? (…) então que coisa lhe confere o direito de sentir a falta dele, como se fosse alguém do passado, ele que nunca existiu, e de o procurar, como se tivesse sido perdido. Porque não pensa que ele é o que aí vem, que está iminente desde toda a eternidade, o vindouro, o fruto final de uma árvore cujas folhas somos nós?
— Rainer Maria Rilke

Aqui, para mim, está a ideia de que não se encontrará um Deus que não existe até que o construamos dentro de nós, não o perdemos se nunca o chegámos a construir. Tenha Deus a forma que tiver, mas seja Deus aquilo que nos faz a nós, aquilo que compõe o mapa de quem somos, um Deus que progride connosco, recua connosco, tem dúvidas e dores e alegrias e certezas como nós, que não nos oprime mas nos convida à metamorfose.

Não é precioso o tempo das perguntas? E as próprias perguntas? Tão preciosas que deveria constituir infracção grave e haver lugar a perda de pontos de cada vez que perguntamos sem saber para que o fazemos.

Como perguntava hoje Roman Krznaric (autor de The Good Ancestor) na House of Beautiful Business, “estaremos a ser bons ancestrais”? Estaremos a cuidar daqueles que ainda pertencem ao porvir com o mesmo cuidado, o mesmo amor e coragem com que (dizemos que) nos ocupamos do aqui-e-agora? Estaremos a fazer-nos as perguntas certas? Estaremos a preparar as novas gerações para (se) fazerem perguntas capazes de (trans)formar realidade(s)?

Chegámos até aqui porque foi longa a sua sede (do Rilke, do “jovem poeta”, da Amália, do Jorge Fernando - ainda é - e de tantos) e insaciáveis as suas almas! Perguntar se vale a pena manter viva a sua memória é tão estúpido quanto ingénua e desatenta é a forma como fazemos tantas perguntas, tantas vezes. Obrigada pelas perguntas que fizeram, pelas respostas que deram e pelas perguntas que deixaram para aqueles que ainda estavam (estão) no futuro, experimentarem fazer e responder!

Que sejamos capazes de ver e perguntar para lá daquilo que o nosso estreito horizonte nos permite. Que eu esteja a cuidar para que a minha amada sobrinha Olívia, que ainda não conhece este mundo pelo lado de fora, saiba que Ítacas (2) há tantas quantas a sua curiosidade, coragem, generosidade e candura quiserem conhecer e dar a conhecer. E que assim seja!

PS.: espero não ter esquecido que estes são apenas alguns pontos de vista, os meus.

1. Terminei em Junho passado, o Programa de Formação em Coaching da Way Beyond - o Way Beyond Coaching Class.

2. Ítaca, Konstantino Kaváfis in 145 Poemas, edição FLOP. Na Biblioteca Way Beyond.

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