A literalidade mata o entendimento

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As máquinas estão cada vez mais inteligentes, já se sabe. Chegará a altura em que serão espertas o suficiente para extrair as mensagens exactas num qualquer texto ou até mesmo em qualquer comunicação oral. Já aí estaremos, porventura, lá ou muito perto, pelo menos. Este é um dos aspectos virtuosos das máquinas inteligentes que inventamos: levam tudo à letra e fazem-no bem. Por exemplo, quando introduzimos numa calculadora a operação “2+2” ela dá-nos o resultado “4”, de maneira consistente e constante; quando carregamos no botão para refrescar ou “puxamos” o ecrã para baixo numa aplicação a página actualiza, desde que exista ligação à internet. As máquinas são previsíveis e isso é dos aspectos que mais nos faz gostar delas. Talvez seja por isso que nos exasperamos com “ecrãs azuis da morte”, com bolas de praia coloridas que giram até ao infinito ou com simples ecrãs que repentinamente deixam de ser interactivos, apesar de continuarem brilhantes. Nesses momentos as máquinas falham-nos, tornam-se imprevisíveis e são commumente brindadas com as nossas impaciência e zanga.

Apesar desses soluços tecnológicos, a sua fiabilidade atingiu níveis suficientes para muitos de nós nos termos tornado dependentes do seu funcionamento. Usamo-las para trabalhar, e cada vez mais são menos os trabalhos que se fazem sem elas; são o nosso passatempo, é com elas que nos entretemos e preenchemos os "tempos mortos"; são o nosso escape e desculpa para sairmos de algumas situações constrangedoras; são a fonte de grande parte de informação que consumimos; são um auxiliar e, por vezes, um substituto da nossa memória; são o que nos mantém ligados, próximos, quando não nos podemos juntar.

Tal é a nossa admiração com a nossa própria criação que não é incomum compararmo-nos com ou aspirarmos ser mais como máquinas. No mundo do trabalho, mas não de forma exclusiva, acontece com frequência. A expressão "é uma máquina a trabalhar” considera-se quase sempre um elogio. Também nesse mundo dos negócios se instala a tendência para deixar decisões importantes a cargo da frieza, leia-se objectividade, dos dados, dos algoritmos, produzidos ou corridos pelas tais máquinas. As máquinas oferecem-nos o que julgamos não possuir por natureza. Criámo-las para serem previsíveis e objectivas e quando assim funcionam deixam-nos descansados.

Apesar de imbatíveis na sua objectividade, há, contudo, um aspecto em relação ao qual as máquinas, por muito complexas e completas que sejam, ainda não conseguem acompanhar-nos. Refiro-me à nossa capacidade para a subjectividade. Vejo-a como uma qualidade ou capacidade mas reconheço que na configuração moral que parece ser a actual é mais fácil qualificarmos positivamente uma pessoa vista como objectiva e negativamente uma pessoa que é considerada “muito subjectiva”. Claro que esta apreciação é, em si, subjectiva. Em todo o caso, parece decorrer da ideia antiga que nos alerta que a natureza humana é fraca, que não podemos confiar em nós próprios e nos da nossa espécie, e que será algo artificial que nos dará força e nos salvará da perdição.

A subjectividade é o que nos permite não levar mensagens à letra, que nos permite enviar mensagens cuja forma e conteúdo podem não coincidir com a intenção subjacente e, ainda assim, fazermo-nos entender. É, precisamente, por sermos naturalmente subjectivos, por vivermos imersos na nossa própria subjectividade que conseguimos fazer nascer, entre muitas outras coisas fantásticas, a metáfora e os seus primos sarcasmo e ironia. Acredito que é também por isto que nos conseguimos entender, desde que nos esforcemos para isso, desde que seja essa a nossa intenção.

Não sendo um fenómeno novo, sobretudo na arte a que me irei referir, fiquei desanimado ao constatar um episódio que ocorreu numa rede social que envolveu o conhecido artista, com o melhor significado da palavra possível, e humorista português Bruno Nogueira. No início de Julho, publicou na sua conta de Instagram uma fotografia adornada por um texto pejado de erros ortográficos que me fizeram rir a bandeiras despregadas. Pouco tempo depois o autor publicou nas efémeras stories alguns comentários de seguidores a corrigir o seu português ou a aconselhá-lo a ter cuidado com a língua, do seu alto pedestal moralista.

Mais tarde, quase a meio de Setembro, sai outra publicação no mesmo perfil que encarei ser uma sequela da anterior. A reacção a esta foi ainda mais efusiva, tendo mesmo provocado alguns colegas e amigos a escreverem em sua defesa.

Não seria estranho que a minha reacção fosse no sentido de considerar que as pessoas que se insurgiram contra as referidas publicações fossem das que não têm sentido de humor, o que pode bem ser verdade. Mas o que pensei e senti foi diferente. Foi pena, preocupação e o tal desânimo. Não foi a primeira vez que algumas das criações do Bruno Nogueira não foram percebidas por alguns elementos do seu público. Talvez tenha sido o meio inflamável das redes sociais e da sociedade de hoje a causa deste meu choque mais violento.

A incapacidade para entender estas publicações ou, por outro lado, a fixação com a literalidade parece empobrecer a nossa natureza, enquanto pessoas. É para mim claro que para se entender este tipo de piada, não indo tão longe quanto o achar graça, já que isso poderá ser demasiado subjectivo, não é possível ficar-se preso ao que “está conforme à letra ou ao texto; ao que é sujeito ao rigor das palavras nem ao que é terminado, claro”.

Não vou cair na armadilha da facilidade em culpar a tecnologia, as máquinas e as redes sociais pelos muitos males que nos assolam. Parece-me evidente, porém, que estas últimas nos deixam com uma ilusão de ligação aos outros, de partilha de um espaço público comum quando, na verdade, nos estão a deixar sós, em bolhas com paredes digitais. Esta solidão e este isolamento podem deixar-nos entregues aos "perigos" dos nossos próprios pensamentos e das nossas interpretações, mais ou menos selvagens. Quando não estamos habituados ou não somos hábeis a estar bem com "os nossos botões", uma forma de nos defendermos pode bem ser agarrarmo-nos à literalidade, procurando evitar equívocos. O problema é que ao sermos literais matamos a subjectividade e, se esta morrer, em consequência, perde-se a possibilidade de constituir a essencial intersubjetividade.

Para nos entendermos melhor e para melhor nos fazermos entender, não é apenas importante conseguir-se ser objectivo mas também colocar as diferentes subjectividades "a conversar", esperando que as diferenças não se anulem e que construam novidade. O risco de errar é maior, é certo. Mas também aumenta a probabilidade de entendermos e de acharmos piada às coisas. E tão importante é encontrarmos piada nas coisas.

Se a clareza na intenção e na forma são importantes para que a comunicação seja eficaz, é a subjectividade que a tornará fluída. É, portanto, uma peça fundamental para que nos entendamos. A tendência crescente para a literalidade é sinal de fraca capacidade de abstracção, que é fundamental para nos compreendermos e, em consequência, aceitarmos as diferenças.

Escrito para o Link to Leaders a 21 de Setembro de 2021; publicado a 27 de Setembro de 2021.

João Sevilhano

Partner, Strategy & Innovation @ Way Beyond.

https://joaosevilhano.medium.com/
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