A propósito de propósito

É sabido que a linguagem não é estanque, evolui. Os significados das palavras mudam mais rápido do que as actualizações dos dicionários e as utilizações que fazemos das mesmas vai variando. Para além disso, como se costuma dizer, “a língua portuguesa é traiçoeira”. E não é apenas para a malandrice. A mesma palavra pode ser usada de diferentes formas, com diferentes intuitos e com diferentes significados, é a esse traiçoeiro que me refiro. Por vezes, basta uma vírgula para alterar completamente o significado. Basta ver o título deste texto como exemplo: há duas utilizações da palavra propósito e se tivesse colocado uma vírgula a seguir ao primeiro “propósito” a frase mudaria substancialmente. Divagações sobre gramática à parte, há vezes em que as evoluções da linguagem não nos fazem avançar mas, paradoxalmente, representam um retrocesso. Será este o caso da recente moda da utilização da palavra “propósito”?

No mundo corporativo, mas não só - as “novas” doutrinas do desenvolvimento pessoal também adoptam as mesmas directrizes - todos parecem andar em busca de um ou do seu propósito. Para as empresas, muitas vezes não é a busca pelo propósito que dá mais trabalho, mas sim sua definição, que exige mais esforço e dedicação. As frases e pequenos textos que agora se lêem competem com os grandes slogans publicitários de outrora. De tal forma que se torna complicado distinguir campanhas publicitárias de algumas declarações de missão ou de propósito de algumas organizações. Hoje, portanto, mais do que um plano de negócios, mais do que uma estratégia bem definida, parece importar ter e oferecer propósitos inspiracionais e aspiracionais que, nos piores casos, são sinónimos de giros e apelativos. E faz algum sentido. Num mundo que tenta de forma desesperada anunciar que quer mudar, num mundo em constante e rápida mudança (perdoem-me o cliché) todos temos de andar a alta velocidade. 

Aliás, em relação às gerações que entraram recentemente ou estão a entrar no mercado de trabalho, diz-se, já não é suficiente oferecerem-se bons pacotes salariais, benefícios atractivos e regalias divertidas. Para atrair e reter as pessoas tem de lhes ser oferecido um propósito, já que as pessoas talentosas, quais enguias que, esgueirando-se das malhas dos patrões antiquados, andam sempre atrás de propósitos mais interessantes e alinhados com o seu, se já o encontraram de forma consciente. Os tais mais novos, são mais rápidos a mudar de ideias do que os mais velhos. Talvez estejam mais adaptados à rapidez e fugacidade dos tempos.

O propósito aparece como a constante que se pretende que norteie as acções e que congregue as intenções. É o eterno devir que se procura alcançar. Será por isso que o propósito é atrativo para quem procura exigentemente um sentido para o que está a fazer e, por isso, as empresas investem tanto a definir o seu. Se por um lado me parece um movimento inteligente e ajustado, por outro fico com a sensação de que se está a procurar evitar uma birra, se for apenas essa a motivação (não são muitos os casos que conheço, confesso). Como quando se dá a uma criança o que ela quer para que não chore nem berre. Muito menos em público porque hoje quase nada é privado, não vão os “talentos” dizer mal para as redes sociais.

Surge-me também outra hipótese. Pode não ser “dar à criança o que ela quer” mas algo mais próximo de “deixá-la com um ecrã qualquer para que faça o que tem que fazer sem chatear muito”. Quantos desses propósitos, escritos por hábeis copywriters (nada contra estes profissionais, pelo contrário; admiro muitos), são coerentes com as práticas e com as culturas que se constroem e se mantêm? Quantos deles serão apenas “manobras publicitárias”? Os propósitos postiços preocupam-me. Da mesma maneira que se insistia nos valores das empresas que poucos conhecem e cuja prática era em grande parte fruto do acaso.

Quando a intenção é apenas atrair e inspirar, duvido da necessidade de ter um propósito. Por outro lado, a obsessão com a busca de um sentido último, se tudo o que se fizer estiver alinhado com um propósito predefinido ou desejado onde residirão o espaço e o tempo para a experimentação? E para a novidade? E o espaço para não saber qual será o resultado? A combinação entre as necessidades de ter um sentido predefinido e de prever, o mais possível, o resultado a alcançar pode ser perigosa. Tanto para organizações como para as pessoas.

Recordo e recupero uma ideia do psicanalista Leon Grinberg, que já referi noutro escrito: o grau de saúde (mental) é proporcional à capacidade de viver com e na ambivalência e na incerteza; por oposição, a patologia será a necessidade imperiosa de controlar e de prever. Segundo esta ideia, adoptar a gestão - em que o controlo, a previsão e a ocupação com os resultados são máximas - como filosofia de vida contém o potencial para o desenvolvimento e/ou manutenção de doença.

Espero que o que escrevi não leve a interpretações erradas. Não sou contra a definição de um propósito, seja para pessoas, para equipas, para empresas ou até nações. Pelo contrário, vejo muitas vantagens nesse exercício. Oxalá todos nós consigamos ter clareza em relação ao que “estamos aqui a fazer” e para que é que o estamos a fazer. Aliviará muito a angústia existencial, acredito. 

O que quis sugerir, talvez com mais palavras do que necessário, foi que na definição e busca de sentido, de propósito, que as intenções estejam claras e que ultrapassem, sem ignorar, os desejos de inspiração e de atracção; que contenham e promovam a liberdade de pensamento e de acção, guiando-nos através de fronteiras flexíveis mas resistentes. Tudo isto para que o propósito não sirva para nos tornarmos rígidos e obtusos mas mais conscientes, atentos e aceitantes do que nos pode fazer desviar. Quem sabe, poderemos ir parar a um sítio melhor do que tínhamos conseguido prever.

Escrito para a Link to Leaders a 9 de Dezembro de 2020; publicado a 15 de Setembro de 2020‌.

João Sevilhano

Partner, Strategy & Innovation @ Way Beyond.

https://joaosevilhano.medium.com/
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