Os burocratas emocionais

Regresso das férias deste Verão para uma notícia triste. Um dos pensadores contemporâneos que mais admiro faleceu no passado dia 3 de forma inesperada, sem que se conheça a causa à data em que escrevo.

David Graeber, no seu livro The Utopia of Rules: On Technology, Stupidity, and the Secret Joys of Bureaucracy, diz-nos que as regras criadas pela burocracia são meros “instrumentos através dos quais a imaginação humana é esmagada e despedaçada”. Diz-nos também no mesmo livro que a burocracia é a causa de uma violência existencial que perturba a nossa habilidade para imaginar, para criar, para brincar e até para pensar de forma clara. “Os procedimentos burocráticos(…) têm a extraordinária capacidade de fazer com que até as pessoas mais inteligentes se comportem como idiotas”.

Podemos inferir que a burocracia de Graeber é como um niilismo forçado, fabricado, que nos empurra para acções sem sentido, sem finalidade a não ser o cumprimento das regras impostas através da repetição acéfala de determinados rituais. A consequência, como podemos observar e experienciar no nosso dia-a-dia, é a diminuição da condição que nos torna humanos: a nossa capacidade de criar e de imaginar e de nos pensarmos a nós próprios. Neste mundo cada vez mais laico e mais parco em valores (1), se Deus foi morto por Nietzsche, o sentido e a criação ficaram entregues aos burocratas e às suas regras. Andar à procura do papel certo (qual papel?) é uma actividade que nos anda a deixar todos aos papéis.

O mundo do trabalho adora regras, procedimentos, carimbos e cadeias de aprovação. Terreno fértil para o crescimento da burocracia, que tem como seu grande aliado o paradigma do controlo. Não é de admirar que no contexto empresarial se recorra a metáforas que comparam as pessoas a máquinas. Por exemplo, as nossas competências são divididas em duras e moles, tal como num computador se distingue o hardware do software. Acontece que num computador nada é moldável. Qualquer falha pode ser rastreada até ao comando danificado. Portanto, tudo, até os erros, pode ser controlado. A ausência de flexibilidade e o controlo absoluto são o sonho de qualquer burocrata.

Talvez não seja estranho nem coincidência que no mundo da psicologia e da psiquiatria se utilize a palavra “rigidez” para designar determinado tipo de comportamento ou forma de pensar e de sentir. São aqueles aspectos que são dificilmente abaláveis, que são inevitáveis e cuja existência aparece como fundamental para a (sobre)vivência. Surgem, precisamente, para proteger algo que se considera frágil, inconstante, incerto e, por isso, causador de sofrimento. Mais vale um medo conhecido do que uma (possível) liberdade desconhecida. Uma das formas de eliminar o sofrimento que advém do que não se conhece, do que é desprovido de sentido, é retirar-se todo o sentido através de mecanismos de controlo. Parece que as organizações não funcionam assim de forma tão diferente das pessoas (2). 

A rigidez psicológica e afectiva tornou-se de certa forma aceitável, neste mundo, tal como a burocracia. Continuam a ser premiadas no mundo corporativo, embora se diga e se comunique oficialmente que se está a caminhar noutra direcção. Mesmo aqueles que não têm tendência para serem rígidos, no mundo do trabalho e, sobretudo, quando se ascende na pirâmide do poder, outro grande aliado da burocracia, são convidados a praticar esse tipo de comportamentos, coarctando a autonomia, o potencial criativo e a confiança das pessoas com quem trabalham. O mundo do trabalho apoia os burocratas emocionais: os que precisam, impreterivelmente, de garantir determinadas condições para conseguirem determinado resultado; os adeptos do “sempre se fez assim porque desta forma funciona”; os seguidores do “à minha maneira ou de nenhuma maneira”. Não existem só no trabalho, longe disso, mas sentem-se muito bem por lá.

A situação global que vivemos actualmente veio acentuar estes traços, tanto em casa como no escritório, espaços que agora se confundem para tantas e para tantos. Não é de estranhar. Há muito que se desconhece ainda em relação ao nosso presente e em relação ao nosso futuro. E, como já referi, uma das formas preferencias para combater o que não se conhece não é necessariamente procurar saber mais: é controlar o que se julga conhecer. Claro que isto limita a aprendizagem; dificulta a contemplação de outros pontos de vista para lá dos que já se conhecem. Por isto, mesmo algumas vezes bem intencionadas e com um propósito declarado de ajudar a pessoas, algumas chefias estão a optar por práticas como “convidar” as suas pessoas a terem a câmara do computador ligada durante o horário de expediente, a intrometendo-se na esfera pessoal, questionando sobre ou pondo em causa todos os momentos “fora do escritório”. Por muito bem intencionadas que sejam, este tipo de práticas não estão a ajudar as pessoas. Pelo contrário.

León Grinberg, psicanalista argentino, deixou-nos a seguinte ideia: o grau de saúde (mental) é proporcional à “tolerância para a ambivalência, para o equívoco e para a ambiguidade”; por oposição, a patologia será a necessidade imperiosa de controlar e de prever. 

Fazem-nos falta pessoas como o David Graeber que teve a coragem de abalar as rígidas fundações da burocracia e, dessa forma, contribuir para a saúde global, que tanto falta nos faz agora.

Escrito para a Link to Leaders a 11 de Setembro de 2020; publicado a 15 de Setembro de 2020‌.


1. Não que considere que as religiões são a única nem a principal fonte de princípios.

2. Pergunto-me para que serão necessárias as disciplinas de “comportamento organizacional”.

João Sevilhano

Partner, Strategy & Innovation @ Way Beyond.

https://joaosevilhano.medium.com/
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