O real, o virtual e o digital

Há uns dias ouvia um episódio de um podcast que tipicamente se dedica à criatividade. O convidado desse episódio é um conhecido “evangelista” no Vale do Silício que explicava, com uma forma “muito americana”, como nos devemos apresentar e compor o nosso espaço quando estamos a comunicar via videoconferência. Foi muito detalhado nas suas recomendações. Chegou a indicar quantos centímetros deve a câmara estar acima da secretária, para o nosso nariz não parecer deformado e a nossa cara desfigurada; que a câmara não deveria ser a que vem incorporada nos computadores mas sim uma profissional com saída HDMI e cujo sinal deveria ser convertido pelo nosso computador; que o microfone ganha se for externo, para a nossa voz soar mais límpida; que devemos “sorrir” com os olhos, para nos tornarmos mais amigáveis; entre outras recomendações. O que mais me prendeu a atenção, para lá de todos os pormenores e do estilo “cheio-de-si-mesmo”, foi algo que disse pouco depois do chorrilho de recomendações: “uma pessoa que é boa comunicadora no mundo real não é, necessariamente, boa a comunicar no mundo virtual”.

Bem sei que desde Março muitos de nós tivemos de nos habituar a comunicar via videoconferência. Zoom, Meet, Teams, Skype, Slack, BlueJeans, Whereby, FaceTime passaram a ser os nomes das nossas salas de reunião e de estar. Os tempos que passamos a olhar para ecrãs aumentaram grandemente porque situações que sabíamos que funcionavam em presença tiveram de passar a ser mediadas pelos aparelhos que hoje nos ligam a tudo e a todos. Este texto não será mais um dos incontáveis que se referem às dificuldades e às exigências desta forma de conversarmos uns com os outros. Também não seguirei as pisadas do tal convidado com um punhado de recomendações, mais ou menos óbvias e mais ou menos inteligentes, para aumentarmos as nossas competência e eficácia a comunicar através de câmaras, microfones e ecrãs. A minha perplexidade e a minha preocupação foram acicatadas pela linguagem que alguns de nós estamos a usar para nos referirmos a estas novas vias e os potenciais equívocos que esse uso acarreta.

Repito a frase que me deixou a pensar: “uma pessoa que é boa comunicadora no mundo real não é, necessariamente, boa a comunicar no mundo virtual”. “Como assim, no mundo real?”, foi a minha primeira reacção. Quer queiramos quer não, quer acreditemos ou sejamos cépticos, o mundo real agora é este. A realidade é que fomos empurrados para casa por um agente perigoso e invisível e obrigados a mantermos-nos em contacto através de meios digitais. Nada disso é virtual ou irreal. Quem está do outro lado são pessoas a sério e não avatares. Compreendo que o adjectivo “virtual” poderá estar na origem deste aparente equívoco porque qualifica com mais do que um sentido. Segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, “virtual” pode significar:

  1. Que existe potencialmente e não em acção.

  2. Susceptível de se realizar ou de se exercer.

  3. Equivalente a outro.

  4. Que é feito ou simulado através de meios electrónicos.

O tal convidado poderia estar a referir-se ao significado explicado na quarta alínea. Coincidência, ou não, é essa a alínea que poderá originar maiores mal-entendidos, porque algo ser feito através de meios electrónicos é diferente de algo que é simulado através de meios electrónicos. O que espanta é a oposição que explicita na primeira parte da frase que proferiu. Ao colocar o mundo virtual em oposição ao mundo real, é como se o virtual-digital não fizesse parte da realidade mas fosse uma espécie de simulacro.

É certo que nem sempre o que dizemos coincide com o que queremos dizer. A pragmática, um ramo da linguística, oferece-nos um conceito que pode ajudar-nos a compreender este fenómeno: as implicaturas conversacionais. De forma breve e resumida, este conceito preconiza que o que alguém quer dizer nem sempre é dito de forma explícita e o que o que é dito de forma explícita pode não conter todo o significado que o orador tenciona passar. O filósofo Paul Grice, que criou o conceito, partiu da teoria do princípio da colaboração, onde orador e ouvinte colaboram na atribuição de sentido à comunicação, inferindo o real significado de uma mensagem. De forma colaborativa, na dança da conversação, o ouvinte preenche os espaços, como que adivinhando o sentido que o orador está a querer dar à sua mensagem, tanto através do que diz como do que deixa por dizer.

No caso que indiquei no início, não é difícil imaginar que o tal evangelista está a querer distinguir a comunicação em presença da comunicação feita através de meios digitais, e que esta última tem, de facto, especificidades que podem afectar a eficácia. Contudo, como é bem sabido, as palavras têm peso e, implicaturas à parte, podem revelar ou conter imprecisões, equívocos e desejos. Segundo este mesmo conceito, o que não é dito pode ser inferido e tem tanta ou mais importância do que o que se consegue ouvir. Dadas as exigências da realidade actual do nosso mundo, não será difícil fantasiar uma segunda hipótese onde possa haver um desejo de se estar a viver uma realidade virtual.

Concordo que um bom comunicador em formato presencial para manter a qualidade da sua comunicação em formato digital tem de adaptar e considerar aspectos que não são tão relevantes quando em presença. Porém, advirto para os cuidados que devemos ter para não ignorarmos a realidade das nossas interacções digitais. Por muito difícil que seja, e é para muitos de nós, esta é a nossa "realidade real", para já.

Escrito para o Link to Leaders a 14 de Outubro de 2020; publicado a 20 de Outubro de 2020‌.

João Sevilhano

Partner, Strategy & Innovation @ Way Beyond.

https://joaosevilhano.medium.com/
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