Abraçar a curiosidade

Quantas vezes se deparou com alguém que “sabe” o que é melhor para outros? Esperando que me perdoe a provocação, cara leitora e caro leitor, com que frequência e com que grau de certeza sabe o que é melhor para os outros? Ainda outra pergunta: quão irritante ou despropositado é perceber que outros julgam saber o que é melhor para si? Se lhe parece que estas perguntas levam a respostas que parecem contraditórias, não é um erro. Parece que acontece muito: sabermos o que será melhor para outros e não gostarmos quando outros nos dizem saber o que é melhor para nós.

Não sendo, de forma alguma, exclusivo do mundo corporativo, aí encontramos variadíssimos exemplos deste fenómeno. E, tipicamente, pelo menos pela minha experiência e de alguns (bastantes!) colegas, encontramos essas pessoas a habitar os departamentos de recursos humanos e/ou em cargos que implicam a liderança de outras pessoas. Entre os inúmeros exemplos que poderia partilhar, escolho um por ser quase caricatural. Há uns anos preparávamos um programa sobre enviesamentos inconscientes, com o propósito de aumentar a consciência e a capacidade para os mitigar no processo de avaliação de desempenho, e reparámos que a vontade da equipa da empresa-cliente que estava a preparar o programa connosco era dar as respostas, como que num guião. Curioso foi perceber que, ao mesmo, tempo queriam que os destinatários se interessassem pelo programa.

Quantas vezes ouvimos que “para as nossas pessoas isso não vai funcionar”; que “não podemos pôr engenheiros a ouvir música ou a olhar para uma pintura”; que “é melhor ter a resposta preparada, porque aqui as pessoas são muito caladas” e não vá acontecer gerar-se um momento de silêncio! Pode ser que as pessoas realmente reflictam e se arrisquem a aprender, a descobrir algo novo durante esses segundos ou minutos…

Há uma dinâmica particular nas relações humanas em que essa assimetria parece ter legitimidade para existir, pelo menos do ponto de vista da aceitação social: a relação entre pais e filhos. De forma mais simples, é commumente aceite que os pais e as mães “saibam” o que é melhor para as suas crianças. Mais ainda, não é estranho ser exigido aos pais que tenham de saber o que é melhor para os seus filhos, sob pena de serem julgados insuficientes nesse papel. Sobretudo quando se trata de bebés. Felizmente, há teorias que desafiam esta ideia.

Donald Winnicott, um famoso pediatra e psicanalista inglês que trabalhou no séc. XX, cunhou a expressão “mãe suficientemente boa”. De forma básica e resumida, com esta ideia, Winnicott preconiza que as mães e os pais (enquanto “figuras cuidadoras”) que têm sempre uma resposta imediata e correcta às necessidades dos filhos não são os melhores, no que respeita ao desenvolvimento das crianças. Os melhores pais, serão os que conseguem acertar muitas vezes e que também cometem erros, tanto naturais como desejáveis; são os que não correm para resolver a situação, permitindo assim que a criança tome contacto com a realidade externa, necessariamente diferente da interna. Por outras palavras, é este mecanismo que possibilita que entendamos progressivamente que não temos sempre razão e que não dominamos o mundo.

Continuando a busca por inspiração no pensamento psicanalítico, viajamos até tempos mais recentes onde encontramos o, também psicanalista e também inglês, Philip Stokoe. No seu livro The Curiosity Drive constrói sobre as ideias freudianas que defendem a existência de duas pulsões básicas - a de vida e a de morte -, que Bion chamou de amor e ódio, ao introduzir a hipótese de existência de uma terceiro pulsão: a da curiosidade. Segundo o autor, a curiosidade tem um papel fundamental na “formação” da nossa mente. A busca por conhecimento e, mais do que isso, acrescento, a necessidade em dar sentido ao que ainda não tem, será um dos principais motores do nosso desenvolvimento (1) e, em consequência, da nossa evolução enquanto humanos.

Procuremos ligar as ideias destes dois psicanalistas: os pais suficientemente bons são aqueles que permitem tempo e espaço para as crianças descobrirem o prazer da descoberta; o tipo de prazer que é aniquilado pela certeza das respostas certeiras. Serão os pais que conseguem viver bem e, através do seu exemplo, passar aos filhos a experiência de viver com e de sustentar a curiosidade. Aquela curiosidade que as tias e avós tendem a matar com um golpe sem misericórdia: “este choro é fome; ou são os dentes; ou é a fralda molhada; ou… De certeza! Só pode ser isso!” Viver com e sustentar a curiosidade, tanto a nossa como a dos outros, implica não ceder à (pre)ocupação com a eficácia e com a eficiência. A ideia é permitir o deleite com o prazer e com a beleza da descoberta, que envolvem o confronto com os eventuais desprazer e frustração, pelo menos os que podem surgir no imediato. Não se trata, portanto, de acertar mas de suportar estar errado para se descobrir e construir algo verdadeiramente novo.

Portanto, julgar que se sabe o que é melhor para os outros, em última instância, é um assassínio da sua curiosidade. E o mais triste é que se trata igualmente de um suicídio, porque para se presumir que se conhece melhor os outros do que os próprios ter-se-á tido de matar a própria.

As empresas, as equipas e os departamentos de recursos humanos não são berçários. Nem mesmo as crianças merecem que adivinhemos e acertemos sempre no que precisam. As pessoas merecem que nos juntemos a elas para descobrir não apenas as repostas mas também novas perguntas.

Escrito para o Link to Leaders a 1 de Abril de 2021; publicado a 14 de Abril de 2021‌.


1. Tanto que até poderá virar-se contra nós. Quando não encontramos sentido temos a extraordinária capacidade de rapidamente inventar um, com todos os riscos que tal invenção pode acarretar.

João Sevilhano

Partner, Strategy & Innovation @ Way Beyond.

https://joaosevilhano.medium.com/
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