Afinal quem são eles?

“Afinal quem são eles?” é o título de um pequeno livro em que os autores, Steve Ventura e BJ Gallagher, com poucas palavras e alguns desenhos, nos mostram que no mundo das empresas “eles”, “os outros”, não podem ser sempre os responsáveis por o que de mau acontece. A sua pequena dimensão e a brevidade com que a mensagem passa não equivalem à sua importância. A mim deixou esta pergunta que, a cada dia que passa, ganha mais razão em ser feita: porque temos tanta dificuldade em assumir a responsabilidade por algo que corre mal?

Sendo eu pessoa, sofro desse mesmo mal. Também eu me apanhei inúmeras vezes a mentir, a inventar, a omitir ou a ser politicamente correcto para evitar as consequências, muitas vezes apenas fantasiadas, de algo que não correu bem. Parece-me que nós, pessoas, não nascemos equipados com a capacidade para assumir quando erramos ou provocamos dano. Talvez seja um regionalismo, à escala planetária, ou a herança de uma determinada ideologia religiosa, mesmo que não sejamos praticantes, que nos deixou com aversão à culpa e com uma tendência para a confundir com responsabilidade (1).

Veja-se a seguinte rábula. Imagine uma criança, com os seus 4 anos, a manusear um brinquedo qualquer. De súbito, uma das peças desse brinquedo separa-se do que até então era um todo. Não há arranjo possível nem “u-h-u” ou “super três” que salve a situação. O que diz a criança? Estas palavras servem apenas para poder fazer uma pausa, para pensar na sua resposta antes de a poder comparar com a que darei de seguida. Imagino que terá respondido que a criança diria algo como: “partiu-se!” Ou, até de forma mais explícita: “não fui eu!” Alguns de nós nunca chegam a abandonar este tipo de estratégia. Outros conseguem, a custo e dependendo dos custos, optar por assumir a responsabilidade.

Para agravar esta tendência, nós, seres humanos, temos outra extraordinária capacidade que tem o potencial de nos afastar da prestação de contas. Refiro-me à habilidade de explicar o mesmo fenómeno com, pelo menos, duas teorias diferentes e correctas. Vejamos: tem na sua mão uma pedra envolvida pelos seus dedos e a palma está voltada para o chão. Faz um gesto de forma que os dedos se estendam e a pedra chega ao solo. Porque cai a pedra? Porque a deixou cair. Certo. Porque existe a força da gravidade. Certo. Duas teorias e ambas correctas. Há, contudo, uma destas teorias que nos isenta de qualquer responsabilidade: a segunda. Quem nunca chegou atrasado por causa do trânsito ou porque ficou preso noutra reunião ou numa chamada? Também há cães, às vezes sem dono, que gostam de comer papéis onde se fizeram os trabalhos de casa. Como é óbvio, e na teoria fica sempre bem, a responsabilização implica que nos impliquemos no assunto e que não atribuamos as razões a uma entidade externa.

Quando nos vemos perante uma pandemia, palavra do ano 2020 para a Merriam-Webster, como a que vivemos, “eles” não podem arcar com a culpa ou com a responsabilidade. Ficamos sem desculpas e sem justificações. Não podemos descansar com a culpa dos outros e isso deixa-nos aflitos, tipicamente. Mas quando pensamos no que está a ser feito ou pode ser feito para sairmos, todos, desta situação “os outros” aparecem rápido. O ano que há pouco terminou tanto nos juntou como nos afastou, literalmente. Há algum tempo que andamos a afastar-nos de uns e a desejarmos pertencermos a outros. A famigerada polarização é cada vez mais evidente.

Não será coincidência que a mesma Merriam-Webster considerou “eles” a palavra do ano de 2019. Embora as razões dessa escolha sejam outras, não deixa de ser interessante uma leitura alternativa: “eles” que podemos culpar e responsabilizar. Na era do indivíduo individualista, sempre certo, os outros estão errados. Porém, se a verdade está em todos, individualmente, não poderá estar em ninguém. Não existirá partilha a não ser por coincidência. Os lugares comuns passam a ser fruto do acaso, da feliz coincidência de perspectivas, afastando o esforço necessário em direcção à integração e à complementaridade.

Embora seja o desejo de muitos, não se pode pedir à História nem à memória que esqueça um ano. Mesmo que tal fosse possível, custa-me pouco acreditar que ignorar um ano como o que passou nos traria grandes vantagens. Espero que 2021 seja um ano em que “eles” começam a fazer mais parte de “nós”. Para isso cada um tem de começar a aproximar-se.

Escrito para a Link to Leaders a 9 de Fevereiro de 2021; publicado a 16 de Fevereiro de 2021‌.


1. Culpa e responsabilidade são conceitos diferentes. Uma breve consulta do dicionário poderá esclarecer.

João Sevilhano

Partner, Strategy & Innovation @ Way Beyond.

https://joaosevilhano.medium.com/
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