Auto-ajuda e aeróbica: um método pseudo-científico para detectar “banha da cobra”

“A dor e o desconforto fazem parte do processo. Ultrapassa a dor e encontrarás o teu verdadeiro eu!”

O monitor — meio sargento, meio profeta de calções de licra — gritava algo parecido com isto enquanto eu tentava apanhar o ar que me escapava. Estávamos aos 37 minutos de uma aula de HIIT (High-Intensity Interval Training) e a minha frequência cardíaca estava a 160. Entre burpees e mountain climbers, ele continuava: “O único limite és tu mesmo! Liberta o teu potencial infinito!”

E foi aí que percebi.

Aquelas frases faziam perfeito sentido. Ali. Naquele momento. Com o córtex pré-frontal em modo de sobrevivência, incapaz de processar qualquer coisa mais complexa que “continua a respirar”. Ao mesmo tempo, havia algo de errado nisto tudo. Algo que transcendia em muito um instrutor demasiado entusiástico. Exploremos.

Foi nessa altura que julguei ter descoberto um método infalível para identificar charlatanismo intelectual. Chamo-lhe o “teste da aeróbica”.

Funciona assim:

Teste A: Pegue numa frase qualquer de auto-ajuda, daquelas pseudo-profundas ou pseudo-intelectuais. Das que vê no LinkedIn ou nos livros do corredor do aeroporto. Agora imagine-a a ser berrada por uma pessoa enquanto faz jumping jacks. Faz sentido? Se faz sentido nesse contexto, então, é treta.

Teste B: Pegue numa frase motivacional de ginásio. Transporte-a para uma reunião sobre estratégia empresarial. Continua a fazer sentido? É porque nunca fez sentido.

Pense nisto. Pense mesmo.

“Saia da sua zona de conforto!” — óptimo para mais uma repetição. Criminoso quando usado como conselho para alguém com síndroma de stress pós-traumático.

“O único limite é a sua mente!” — excelente para flexões. Idiota quando tem contas para pagar.

No pain, no gain!” — discutível mesmo no ginásio. Psicopático quando aplicado a relações humanas.

Há ciência por trás desta hipótese1. Quando fazemos exercício intenso, o córtex pré-frontal — a zona do cérebro responsável pelo pensamento crítico — fica ocupado a gerir a crise cardiovascular em curso. Os estudos mostram alterações significativas na oxigenação e actividade desta região durante esforço físico moderado a intenso.

Kahneman já o tinha explicado2: quando o Sistema 2 está sobrecarregado, o Sistema 1 assume o comando. E o Sistema 1 adora uma boa rima. Uma aliteração pegajosa. Uma promessa de transformação em três passos. É o momento perfeito para contrabandear ideias idiotas através das nossas defesas intelectuais.

Não é coincidência que muitos gurus de auto-ajuda façam as pessoas saltar em trampolins ou andar sobre brasas; que os retiros transformacionais envolvam privação de sono, jejuns, danças extáticas, ingestão de psicotrópicos3, técnicas curiosamente partilhadas por cultos apocalípticos e departamentos corporativos que organizam retiros para team building. O princípio é: cansar o corpo para adormecer a mente crítica.

Esta dormência vai além da manipulação cognitiva. Revela algo mais perverso na nossa cultura. A auto-ajuda transformou-se num acto masturbatório e voyeurista. “Olhem para mim! Vejam como me transcendo! Admirem a minha jornada!” É exibicionismo narcísico empacotado de altruísmo. “Partilho isto para vos inspirar” — dizem, enquanto procuram capitalizar a nossa inadequação.

Pense naquele seu conhecido no Instagram. Sabe qual. O que publica citações motivacionais sobre fundos de pôr-do-sol. A que documenta cada treino como se fosse uma expedição ao Evereste. O que transforma cada corrida matinal numa metáfora sobre resiliência.

Reconhece o padrão?

É a pornografia do esforço. Tal como a verdadeira pornografia, cria expectativas irrealistas, vicia, e contribui para um sentimento de insatisfação e solidão que aparenta ser cada vez mais profuso4

Vivemos tempos em que ser realista é uma ofensa5. Os optimistas são os novos fundamentalistas do bem-estar. Se não estás a sorrir, estás a fazer mal. Se não estás motivado, és preguiçoso. Se não acreditas que “tudo é possível”, és negativo. E claro, tudo isto deve ser alvo de uma espécie de desempenho artístico, teatral.

Esta mentalidade contamina todas as esferas da vida. As empresas, sempre em busca de uma racionalidade imaculada, adoptam “metodologias ágeis” — que, numa análise desapaixonada, se revelam treinos HIIT aplicados à gestão de projectos. Os departamentos de recursos humanos falam em “resiliência” e “mentalidade de crescimento” como se fossem PT corporativos. As escolas implementam programas de “grit” que ensinam as crianças que o fracasso é apenas falta de esforço.

É o que acontece quando confundimos movimento com progresso. Quando tomamos agitação por acção. Quando acreditamos que todos os problemas — pessoais, sociais, estruturais — podem ser resolvidos com mais esforço individual.

Byung-Chul Han tinha razão sobre a sociedade do cansaço6. Mas esqueceu-se de mencionar: é uma sociedade que confunde exaustão com excelência. Que toma suor por substância. Mas a sua leitura exige o tipo de atenção lenta que a nossa sociedade do cansaço já não permite.

Precisamos de uma resistência. Um movimento “subterrâneo” de pessoas que pensam sentadas. Que reflectem deitadas. Que contemplam paradas. Pessoas que entendem que o “conhece-te a ti mesmo” de Delfos não precisou de burpees para se tornar sabedoria milenar. Que Kant não escreveu a Crítica da Razão Pura entre séries de agachamentos. Que Proust não precisou de treinos matinais para encontrar o tempo perdido — bastou-lhe uma madeleine, muito repouso e uma total ausência de publicações no LinkedIn sobre a sua produtividade literária.

Wilfred Bion falava da “capacidade negativa”7 — a capacidade de tolerar incerteza, ambiguidade, o não-saber. É exactamente o oposto do que a cultura ginásio-auto-ajuda promove. Lá, cada problema tem uma solução em cinco repetições. Cada dúvida pode ser vencida com mais esforço. Mas a vida não funciona assim. Nem o pensamento.

Então aqui vai o teste definitivo. Da próxima vez que alguém lhe tentar vender sabedoria — seja num livro, num retiro ou oficina, numa publicação motivacional — pergunte-se:

Isto faria sentido se fosse gritado enquanto eu saltasse e abanasse os braços?

Se sim, fuja.

A não ser que esteja mesmo num ginásio. Aí, deixe-se levar. Afinal, ninguém espera profundidade filosófica entre séries de abdominais. O problema é quando saímos do ginásio e continuamos a pensar como se ainda lá estivéssemos. O problema é quando a sociedade inteira se transforma numa aula de aeróbica perpétua. Sempre a saltar. Sempre a suar. Sempre a gritar banalidades positivas. Nunca a parar para pensar se isto faz algum sentido.

Precisamos de recuperar o prazer de pensar devagar. De duvidar confortavelmente. De não saber com elegância. Como escreveu Kate Soper8, precisamos de um novo hedonismo — um que valorize o tempo livre sobre a produtividade, a contemplação sobre a optimização, a ligação sobre o consumo.

Demoremo-nos. Hesitemos. Duvidemos.

E sobretudo: não confundamos movimento com progresso. Não tomemos agitação por acção. Não troquemos profundidade por desempenho.

Porque ao contrário do que o seu instrutor de spinning lhe diz às sete da manhã, há limites que não estão na sua mente. Há dores que não devem ser transcendidas. Há zonas de conforto que são, na verdade, zonas de sanidade que custaram anos a construir.

E há sabedorias que só surgem quando estamos suficientemente parados para as ouvir. Suficientemente quietos para pensar. Suficientemente corajosos para fazer nada.

Escrito em repouso absoluto, com uma frequência cardíaca de 62 batimentos por minuto e zero intenção de inspirar quem quer que seja. Se isto o motivou, procure ajuda profissional.

  1. Estudos mostram alterações significativas na actividade do córtex pré-frontal durante exercício intenso, comprometendo funções executivas e pensamento crítico. Ver Moriarty et al. (2019) “Exercise intensity influences prefrontal cortex oxygenation during cognitive testing” e estudos relacionados sobre interferência cognitivo-motora. ↩︎

  2. Daniel Kahneman, Thinking, Fast and Slow (2011). O psicólogo distingue dois sistemas de pensamento: o Sistema 1 opera de forma automática, rápida, intuitiva e emocional, tomando decisões baseadas em padrões e heurísticas; o Sistema 2 é mais lento, deliberativo e lógico, responsável pelo pensamento analítico e pelo controlo consciente. Quando estamos cansados ou sob stress, o Sistema 2 fica comprometido e o Sistema 1 assume o comando. ↩︎

  3. O podcast “The New Gurus” da BBC Radio 4, apresentado por Helen Lewis, documenta como estes métodos são sistematicamente usados para criar estados alterados de consciência que tornam as pessoas mais susceptíveis a mensagens de auto-ajuda. ↩︎

  4. Monika Jiang, "The wellness industry won’t heal you” (https://open.substack.com/pub/oneliness/p/the-wellness-industry-wont-heal-you) ↩︎

  5. Como explorei em “Ver com clareza aleija, por isso vê-se turvo”, preferimos a névoa reconfortante à clareza dolorosa. ↩︎

  6. Byung-Chul Han, A Sociedade do Cansaço (2014, tradução portuguesa pela Relógio d’Água). O filósofo sul-coreano argumenta que vivemos numa sociedade de auto-exploração voluntária. ↩︎

  7. Conceito desenvolvido no meu texto “As vantagens do pensamento negativo”, originalmente de John Keats e expandido por Wilfred Bion. ↩︎

  8. Kate Soper, Post-Growth Living (2020). A filósofa propõe um “hedonismo alternativo” que encontra prazer em formas de vida menos consumistas. ↩︎

Escrito para o Link to Leaders a 23 de Setembro de 2025, publicado a 30 de Setembro de 2025.


João Sevilhano

Partner, Strategy & Innovation @ Way Beyond.

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