A erosão das palavras grandes

Certas palavras chegam já gastas, como moedas que passaram por demasiadas mãos. “Sinergia”, “disruptivo”, “transformação”, “holistico”, “impacto”. Pronunciamo-las sem pensar, automaticamente, como quem diz “bom dia” - sem desejar realmente que o dia seja bom - ou pergunta “tudo bem?” - sem realmente se interessar pela resposta. São palavras que perderam peso, que flutuam em vez de pousar.

Lembro-me de quando “inovação” ainda significava algo. Agora está em todo o lado - no título de cargos, em nomes de departamentos, em slides corporativos. Inovámos tanto a palavra que ela própria precisa de inovação. É como inflação linguística: quanto mais usamos, menos vale.

O curioso é como as palavras verdadeiramente importantes se tornaram quase impronunciáveis no contexto profissional. Experimenta dizer “bondade” numa reunião de estratégia. Ou “beleza” numa análise de resultados. Alguma vez pensou numa reunião “bela”, ou “rica”? É provável que não. Há um embaraço imediato, como se tivéssemos trazido o pijama para o escritório. Estas palavras parecem demasiado macias, demasiado humanas para o mundo dos negócios. Aposto, por outro lado, que algumas reuniões em que participou terão sido “produtivas”, “eficazes” ou “eficientes”. Palavras como estas aí já valem.

Mas são precisamente estas palavras proscritas que descrevem o que realmente procuramos. Quando dizemos que queremos engagement, não será que queremos cuidado ou envolvimento? Quando pedimos commitment, não será lealdade ou compromisso que procuramos? Escondemos os nossos desejos humanos atrás de anglicismos técnicos, como se a língua estrangeira nos protegesse da vulnerabilidade de admitir o que precisamos.

Desenvolvi um pequeno exercício mental: quando ouço jargão corporativo, tento traduzir para a palavra humana correspondente. “Vamos alinhar os stakeholders” torna-se “vamos falar com as pessoas”. “Precisamos de ownership” fica “alguém tem de querer mesmo fazer isto”. É surpreendente como a simplicidade clarifica, como despir a linguagem revela tanto o problema como a solução. Porém, há quem use tantas destas palavras que torna o exercício em si tão custoso que me faz perder no esforço de decifrar o código.

As palavras que resistem ao desgaste são precisamente as que usamos com parcimónia. “Obrigado”, dito com intenção. “Desculpa”, quando realmente sentimos. “Não sei”, quando é verdade. São palavras que mantêm o seu peso porque as guardamos para quando pesam mesmo.

Talvez precisemos de um novo vocabulário - ou melhor, de recuperar o antigo. Palavras que ainda tenham terra agarrada às raízes, que não tenham sido lixadas até perderem textura. Palavras que nos obriguem a parar antes de as pronunciar, a verificar se queremos mesmo dizê-las. Porque no fundo, a erosão das palavras grandes é sintoma de algo maior: a erosão da nossa capacidade de sentir o que dizemos, de dizer o que sentimos. Talvez mais que isso: o definhamento da nossa capacidade de pensar.

Escrito para a 23 de Junho de 2025, publicado no Link to Leadersa a 8 de Agosto de 2025.

João Sevilhano

Partner, Strategy & Innovation @ Way Beyond.

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