Depois da pós-verdade, a pós-profundidade
À conta da minha formação académica, habito frequentemente espaços de conversação e de apresentação de ideias sobre psicologia e desenvolvimento humano. Confesso que ouvir ou ler esta expressão - "desenvolvimento humano" - me causa arrepios de desconforto e faz-me involuntariamente semicerrar os olhos. Pior ainda se o desenvolvimento for "pessoal" em vez de "humano". Aí os olhos reviram e o arrepio substitui-se por um suspiro de exasperação. Se substituirmos por "florescimento" a primeira palavra da referida expressão, uma síncope ou reacção vagal estarão em risco de chegar.
Estes ambientes proliferam em contextos formais e informais; espontâneos e programados; corporativos e civis; nacionais e multinacionais. Talvez aconteça menos nos meios académicos, que continuam chatos, aborrecidos. Não se souberam reinventar. Mas será que existe alguma relação entre a chatice da academia e, fora desses meandros, a necessidade febril de entreter e de, perdoe-me o leitor pelo impropério que se segue, "impactar" a audiência, individual e colectivamente, para, claro, no final, se conseguir criar uma comunidade que continua ligada através de uma hashtag?
Observo crescentes vacuidade, superficialidade, sensacionalismo, entusiasmo, optimismo nas mensagens veiculadas. Os aplausos surgem, indiscriminadamente, e até há ocasiões em que são mais presentes e veementes nas mensagens adornadas precisamente pelos adjectivos com que comecei este parágrafo. Da mesma forma que os oceanos estão contaminados com plásticos, e a sua versão microscópica quase que atingiu a omnipresença, também o universo das ideias sofre de uma intoxicação similar: conceitos outrora substanciais aparecem agora plastificados, artificiais e brilhantes, qual cenário do filme da Barbie – visualmente atraentes mas fundamentalmente sintéticos, fabricados em massa, e paradoxalmente destinados a uma obsolescência programada e a uma permanência eterna.
As narrativas são invariavelmente prescritivas, positivas e com uma pretensão individualista, procurando dotar cada indivíduo presente com mais poder, para que assuma o protagonismo da sua vida com vista a salvar o mundo, de preferência através de um aumento considerável de empatia™.
E tantas palestras e comunicações que começam ou terminam com petições para se fechar os olhos, respirar fundo e pensar numa cor (que pode, ou não, tingir todo o corpo ou uma parte específica, como o lóbulo esquerdo da orelha, que deverá ser o centro energético da próxima transformação civilizacional), animal, palavra ou sensação. Pedidos que buscam uma fantástica e sagrada resposta interior, porque esta estará, certamente, dentro de cada um dos atendentes, escondida debaixo de algum trauma que se formou na infância ou na semana passada.
Há vezes em que a resposta está na libertação através de um grito, de um gesto, um salto ou de uma combinação dos três. Ou naqueles momentos sublimes em que somos convidados a voltar-nos para o parceiro do lado e, especando durante um minuto, em silêncio, apenas ficar a apreciar a humanidade, oferecendo as nossas presença e atenção plenas. Claro que tem de se terminar com um abraço a uma pessoa estranha, porque estamos demasiado na nossa cabeça e precisamos de incorporar qualquer metafísica barata, de nos descalçarmos e tocarmos com a pele nua dos pés no chão ligando-nos à terra, e porque nem sempre há uma árvore carente, a precisar de ser abraçada. Tudo isto por estarmos demasiado acomodados, por sermos cegos, por termos sido hipnotizados pela perversa garra do capitalismo consumista. Tudo isto para sairmos da nossa zona de conforto, porque, obviamente, estaremos demasiado confortáveis.
Curioso é ver como este discurso se mistura e se entrelaça com banalidades pseudo-económicas que apontam quase sempre para a necessidade de crescer ou, melhor ainda, "escalar"; para a vontade, que pode ser paradoxal, de encontrar nichos de mercado ou de ter uma "abordagem boutique"; para a garantia que a oferta não é superior à procura ou vice-versa; para o desejo de incluir a comunidade, a sociedade, o país, o continente como uma parte interessada e membros virtuais de um conselho de administração imaginário que nunca se reúne.
Neste universo de ideias plastificadas, as redes sociais e os influencers merecem menção especial como distribuidores-chefe do conteúdo pré-digerido que chamamos de sabedoria. Com os seus feeds cuidadosamente curados, onde mesmo o "autêntico" é meticulosamente produzido, estes novos gurus do capitalismo espiritual vendem-nos uma versão do desenvolvimento pessoal que é indistinguível do consumismo.
Esta tribo tecnológica moderna vende-nos a ideia de que o crescimento pessoal é uma questão de aplicações, de suplementos, de meditações guiadas de cinco minutos ou de frases inspiradoras sobre paisagens nebulosas. Como os antigos vendedores de elixires milagrosos, oferecem soluções engarrafadas para os dilemas existenciais da humanidade – apenas agora o frasco é digital e vem com uma subscrição mensal. E como não mencionar as master classes, os workshops transformativos e os retiros de fim-de-semana que prometem revolucionar a tua vida por módicos 999€ (promoção especial só até amanhã!).
E como poderíamos esquecer o mundo digital, onde reina actualmente a inteligência artificial (IA), que simultaneamente nos promete maravilhas inimagináveis e ameaça a nossa própria existência, sem que ninguém consiga articular concretamente quais as benesses e os malefícios que tais instâncias trarão para além de vagos "novos paradigmas" e "disrupções".
O discurso sobre tecnologia oscila freneticamente entre a utopia e a distopia, raramente parando no território mais útil da realidade concreta. Uma semana somos informados que a IA resolverá todos os nossos problemas; na semana seguinte, que nos substituirá a todos. O blockchain era a solução para todas as transações humanas até deixar de o ser. O metaverso foi proclamado como o futuro inevitável até esfumar-se em irrelevância. Web3, realidade aumentada, Internet das Coisas – cada nova iteração tecnológica é apresentada não como uma ferramenta com potencial, limitações e compromissos, mas como uma revolução inevitável que transformará fundamentalmente o que significa ser humano.
Tudo isto é servido em frases curtas, ditas de forma enfática, entusiástica e certa, que pouca margem deixam para reflectir. Visam apenas a concordância ou o seu contrário, mas sempre com uma volta argumentativa, um labirinto lógico que, nas vezes em que surge um impasse, termina com "é o meu ponto de vista" ou, pior, "é a minha verdade".
E tudo isto sem qualquer necessidade de suportar o que se diz com factos verdadeiros. Perdoe-me a redundância, mas, lembre-se, estamos na pós-verdade e os factos passaram a ser verdade ou mentira. Depende, lá está, da perspectiva. Estamos agora também na era da pós-profundidade, onde o que importa não é a substância do pensamento, mas a forma como o empacotamos e o sentimento momentâneo que gera.
Seria suposto terminar um artigo destes com algo "positivo", um caminho de saída para este cenário que procurei pintar. Não o vou fazer. Não contribuirei para o que acabo de expor e criticar. Talvez deixando assentar as ideias, não procurando concordar ou discordar, nem procurar uma solução, culpados ou razões; deixando-se estar, apenas, resistindo à necessidade de formar já uma opinião que soe inteligente, indignada ou algo na mesma linha. Talvez seja isso que falta. Suspeito também que não apontar o caminho, encontrar a resposta ou a solução poderá ser, precisamente, o melhor caminho para se encontrar a resposta ou solução.
Escrito para o Link to Leaders a 18 de Maio de 2025, publicado a 4 de Junho de 2025.