Não se pára o vento

No dia 30 de Março de 2021 concretizámos um desejo que já tínhamos fazia muito tempo: conversar o José Afonso sobre o José Afonso. Primeiro, por ser nosso amigo, depois, por ser nosso colega e parceiro da Way Beyond e, acima de tudo, por ser, como escreveu o João um destes dias, “uma das pessoas mais correctas e sábias com quem tivemos e temos o gosto de aprender e de trabalhar”. 

“Vou gostar, mesmo que na prática não me reveja no que vejo, mas aceito-me como sou” (JA)

Ângela - Eu acho que vale a pena começarmos pelo princípio, Zé: quem é o Zé? Como é que o Zé se descreve? Conte-nos lá. 

José Afonso - (risos) Boa questão! Chama-se a isso uma pergunta traiçoeira. Defino-me como uma pessoa normal, genuína, espontânea. Sobretudo, verdadeira, neste sentido de que não tenho nada a esconder e, desse ponto de vista, acho que sou o que está à vista, o que está no sentir à volta de mim. Acho que sou isso, não me sei definir de outra maneira. 

Poderia definir-me por aquilo que fui fazendo ao longo da vida, poderia definir-me por aquilo que estou a fazer agora, pelos sonhos que ainda não realizei, mas… É neste exacto momento, a forma como eu consigo definir-me. Acho que sou isso: genuíno. Aquilo que estão a ver, a ouvir e a sentir, é aquilo que eu sinto que sou. Não sei se posso ir mais além numa questão tão difícil. 

Ângela - É muito interessante o Zé dar essa resposta porque, de alguma maneira é a forma como nós falamos de si. Há algumas respostas que o Zé nos dá que são aquilo que nós dizemos entre nós é “Olha! O Zé a ser o Zé!” Então, isto já traduz um pouco do nosso entendimento, da relação que temos vindo a construir consigo., nesta história que o Zé tem, já com tradição, com a Escola [Europeia de Coaching], com o Vítor, com o João e agora connosco também na Way Beyond. O Zé quando fala de si nos nossos contextos de formação, nós conseguimos perceber uma riqueza grande de experiência. Conseguimos ver que o Zé passou por muitos contextos, muito diversos: desde o militar até ao mundo das empresas. 

José Afonso - (risos) Obrigado [a experiência militar]. E, em todo o caso, com muito orgulho pelo que fiz, sobretudo o que ajudei a fazer. Apesar de odiar a tropa. 

Ângela - Neste percurso que o Zé nos vai referindo, desde esse até à relação com os seus netos (que servem para muitos exemplos e nós temos vindo a conhecê-los assim)… Ao longo deste percurso, Zé, há algum momento que gostasse de destacar e que tenha sido particular em termos de aprendizagem para construir o Zé que é hoje? 

José Afonso - É capaz de haver vários.  Quanto à riqueza ou à variedade de experiências, de facto, o mérito não é meu. É do bilhete de identidade, é dos meus pais, é da época em que nasci e quanto a isso eu não posso fazer nada. A verdade é que as experiências que as experiências que nós temos valem em função de como nós as vivemos. Eu vivi todas as experiências da minha vida, com mais ou menos sofrimento, nalguns casos com mais prazer que noutros, sempre como se fossem lições de vida para mim próprio. E, se alguma coisa contribuiu para eu ser quem sou, provavelmente a que mais terá contribuído terá sido a grande admiração que eu tenho, ainda hoje, pelo meu avô paterno que foi um homem que morreu com 102 anos. Ele morreu no dia e na hora em que quis morrer, acho que foi ele que tocou no botãozinho que o fez partir. Eu dou-lhe o exemplo de que eu estava em Lisboa, ele durante a noite, numa noite, fartou-se de falar em mim, ele já estava muito debilitado - ele tinha 102 anos, atenção, estamos a falar de uma pessoa que teve uma vida prolongadíssima, muito saudável mentalmente, mas a certa altura com uma perna partida não recuperada, entrou no sentimento de não valer a pena andar cá mais. Chamou por mim durante a noite, o meu pai telefonou-me às 7h da manhã do dia seguinte, dizendo-me “olha, acho que te devia dizer isto: o teu avô fartou-se de perguntar por ti, ele próprio se deu conta ‘ah pois é, o Zé está em Lisboa’ e depois dormia e voltava a acordar com isto e então fiz questão de te dizer isto”. Eu agarrei no carro e vim a Leiria, estive com o meu avô 5 minutos e ele, a partir do momento em que me viu, as lágrimas correram-lhe pela cara, apertou-me a mão e disse “Zé, vai embora para a tua vida”. Eu fiquei mais uma hora ou duas com ele, a conversar e, enfim, entretanto voltei para Lisboa. Quando vinha a meio do caminho, tocou o telefone para me dizerem que ele tinha acabado de morrer. Isto para mim é um exemplo do modo como… Ele era literalmente analfabeto, mas tinha uma visão da vida e uma sabedoria para encarar os acontecimentos da vida, desde as altas tecnologias - eu estou a pensar quando o Homem foi à Lua, a forma como ele lidou com isso; quando apareceu a primeira televisão - e eu sempre achei “como é que um homem ignorante, do ponto de vista da literacia, consegue interpretar com tanta genuinidade, mas com tanta sabedoria, tanta utilidade prática para a vida dele e de quem está à volta dele. E, portanto, eu diria, não é bem um acontecimento mas é o mergulhar na vivência do meu avô, e foi ele que muito de perto me criou, estive muito mais com este meu avô do que propriamente no dia-a-dia com os meus pais, apesar de morarmos na mesma aldeia, mas o meu pai tinha uma actividade de alfaiate que o obrigava a estar constantemente em movimento com clientes, com empregados, etc. O meu avô era camponês e eu ia com ele para o campo, com ele, com as cobras, com os sardões, com os ratos e com a rega… Fui aprendendo a lidar com as coisas, as piores e as melhores. E acho que isso me ajudou muito. 

Houve um princípio que eu aprendi muito cedo e que me é muito útil - quando tinha 17 anos fui membro de uma organização católica de juventude de que acabei por ser dirigente nacional, entre os 17 e os 20, e que tinha uma trilogia que eu nunca esqueci e mantenho e que vocês vão perceber a importância que teve na minha vida: ver, no sentido de percepcionar, apreciar do ponto de vista destituído de opiniões; julgar, que é outra coisa que se segue ao ver; e depois o agir. Esta trilogia - ver, julgar e agir - julgo que foi outra lição de vida que aprendi com o cardeal Cardijn, um senhor belga, que fundou o movimento Juventude Operária Católica. E acho que isto também me marcou muito.

E, se quiserem, uma terceira coisa que é quando falam dos meus netos e eu falo do meu avô é curioso porque eu considero que o processo de desenvolvimento humano é muito um processo equivalente, isomorfo, num certo sentido, do desenvolvimento da criança. Eu, como ser adulto, se eu quiser continuar a chamar-me criança em desenvolvimento posso fazê-lo.

Então, o meu avô, o ver, julgar e agir, e esta ideia de que o processo de desenvolvimento humano em geral, nas organizações ou enquanto crianças é muito semelhante, são aprendizagens sobre aprendizagens sobre aprendizagens; são camadas sobre camadas que pressupõem as anteriores com o que de bom e mau têm, com o que de positivo e a incorporar têm e com o que de negativo, ou tido como tal têm, e a rejeitar têm, que faz sentido. 

E, pronto, são estes os três pilares do meu desenvolvimento. 

Ângela - Zé, neste percurso e agora tocando aqui mais esta aproximação que nos traz ao nosso trabalho e àquilo que somos e que fazemos no dia-a-dia… Eu sei que já fez a sua formação como psicólogo mais tarde, como é que salta daí para a abordagem de Coaching e para esta ocupação, esta forma de estar agora no mundo do trabalho. O que é que o fez saltar para aqui? 

José Afonso - É uma boa questão, mas eu não sei se saltei para aqui, se saltei para ali. Eu antes de iniciar o curso de psicologia já trabalhava na área da gestão de recursos humanos. Fui inspector do trabalho, eu era funcionário público, comecei por ser dactilógrafo na função pública e a fazer tudo e mais alguma coisa, sem interesse na maioria dos casos, e depois entrei em empresas e a ideia que eu sempre tive foi que boa parte das interacções estabelecidas nas empresas, as relações de poder, as relações de dependência, as relações de interesses diversificados mas não necessariamente antagónicos, como as teorias marxistas me iam inspirando também, ao mesmo tempo que as católicas, havia aqui também um… Os tais dois mundos igualmente possíveis e perceptíveis que eu vinha encontrando, levaram-me sempre a sentir que aquilo de que se tratava era de cada um conseguir, independentemente das opiniões próprias, das percepções próprias, dos juízos próprios e das acções próprias, respeitar o dos outros. E lembro-me de… eu apanhei a tropa antes do 25 de Abril e depois do 25 de Abril, apanhei todo aquele percurso que é difícil de descrever em meia dúzia de palavras mas que é um percurso em que se transita de uma clandestinidade perigosíssima em que qualquer coisa que se fizesse, e muitas se foram fazendo sem que ninguém se tivesse dado muito conta disso, era arriscadíssimo, até ao momento em que tudo era permitido até excessos, até exageros, até faltas de respeito. Julgo que aqui, quer antes do 25 de Abril quer depois do 25 de Abril, eu sempre entendi que as acções que cada um de nós pratica estão muito relacionadas com o modo como nós entendemos a realidade e a julgamos - cá está o ver, o julgar e o agir - e, desse ponto de vista, nas organizações, quando se está perante um conflito, o conflito só se pode resolver e ultrapassar verdadeiramente se, em cada momento, eu me conseguir pôr do lado do outro. Se quiserem, uma das minhas maiores coroas da glória se assim se pode dizer (não sei o que é isso da glória,  não é?), um dos aspectos que é emblemático da minha postura foram negociações impensáveis e impossíveis que foram possíveis e realizadas com os adversários mais inimagináveis: com a extrema esquerda, com o Partido Comunista da parte mais ferrenha dos sindicalistas, sempre na perspectiva de aceitar que o outro, do seu ponto de vista, tem razão e exigir que o vice-versa fosse também respeitado. E duas ou três negociações altamente problemáticas, que ninguém acreditava que fossem bem sucedidas, acabaram por sê-lo um pouco à conta deste princípio. E este princípio tem-me valido para tudo. Na própria psicologia, eu procurei sempre a formação direccionada para uma abordagem terapêutica não analítica, não de grandes aprofundamentos, não de  grandes porquês mas numa perspectiva funcionalista: isto é disfuncional, então o que é que podemos fazer para tornar funcional? Para quê? Para que eu possa ser mais feliz. Eu quem? O meu cliente. Eu quem? O meu colega de equipa de que eu sou líder ou que é meu chefe, o sindicalista… Portanto, esta ideia de que a psicoterapia é apenas, salvo seja, para efeitos práticos, é uma aprendizagem alternativa que me torne mais funcional em relação à minha vida e ao modo como eu quero viver. Seja em que sentido for, são novas aprendizagens. A própria ideia de patologia arrepiava-me sempre um pouco “ah, esse tipo é patológico”, eu não sei o que é isso. Se calhar há, mas não é disso que se trata no dia-a-dia das empresas e das organizações. 

Depois, a minha caminhada nos Recursos Humanos foi sempre pautada por este sentido de que quando cada um dentro da organização conseguir posicionar-se aceitando que o outro tem legitimidade, fantástico. 

Se calhar já dei este exemplo que é de quando o meu neto mais velho usou pela primeira vez uma moeda que eu lhe dei para ir comprar uma garrafa de água. E eu não lhe dei o valor da garrafa de água e, portanto,  ele tinha de receber troco. E isto era uma patamar significativo para ele que tinha 5 ou 6 anos. Ele vai e compra e vem esfuziante ter comigo e diz “Avô, nem queiras saber! Sabes que o empregado virou-se para mim e disse-me ‘então o que é que o senhor quer?’”. Esta ideia de este miúdo ter valorizado a ideia de ter sido tratado como senhor. O que ele valorizou não foi o ter trazido troco, não foi uma operação, uma cognição, um raciocínio, não foi uma tarefa bem executada, foi o ser reconhecido como ser legítimo, igual ao trintão que estava à frente ou ao cinquentão que estava atrás. Ele foi tratado por senhor, certamente pela primeira vez na vida e ele apreciou. 

Ora bem, se calhar as pessoas precisam de ser reconhecidas na sua legitimidade, mesmo quando estamos em desacordo com elas, mesmo quando temos de dar orientações ou admoestações ou castigos, até, mas sempre an perspectiva do respeito pelo outro. E eu não quero cometer aqui uma heresia, mas penso que foi o que me levou à psicologia e ao Coaching porque o que é o Coaching se não acompanhar alguém que quer ser mais funcional do que estava a ser antes? Não vejo grande diferença.

Ângela - Cá está o Zé a ser Zé! Ias dizer alguma coisa, Joana? 

Joana - Sim, mas não vem bem no seguimento das perguntas que foram feitas. Eu fico deliciada, acho que é a palavra justa, a ouvir o Zé. Sempre! E esta minha delícia vem da forma como eu vou acompanhando o raciocínio do Zé ou o que eu compreendo do raciocínio do Zé e vem da escolha quase sem hesitações de uma linguagem, de uma escolha de palavras incrível, muito cuidada, que traz não só este prazer a quem gosta de palavras - como nós, na Way Beyond - e, por outro lado, que cada palavra só poderia ser aquela e não poderia ser outra e que isso não acontece por acaso. E isso basta. O Zé pode falar do que quiser, durante o tempo que quiser. É maravilhoso! Isto não é bem uma pergunta, é um comentário. Isto faz-me pensar numa grande consciência da sua presença e participação neste mundo. 

José Afonso - Aqui há muitos anos, estive presente na ante-estreia de um filme que, na altura, era um filme chocante para a realidade portuguesa da altura. Estávamos em 1975/76 e o realizador, António de Macedo, realizou um filme chamado “As horas de Maria”. E eu vivia em Santarém e fui ao teatro Rosa Damasceno, à exibição do filme em ante-estreia, e depois seguiu-se um debate no cineclube lá do sítio sobre o filme que eu achei bom filme, nada do outro mundo, não uma obra-prima, mas sobretudo altamente polémico e agressivo para as comunidades católicas deste país. Eu não sou católico, já não era na altura, fui-o muito mais cedo, mas respeito e, lá está… O impacto desse filme, por exemplo, na comunidade da minha aldeia - eu disse-lhe isto - é de violência atroz! Ele deu-me uma resposta que me calou “você tem razão, mas eu não sei passar a minha mensagem de outra maneira. Bertold Brecht há muito poucos”. Eu ouvi aquilo e na altura fui reler Bertold Brecht, agora já não me lembro, e achei piada: é que o Bertold Brectht tem uma maneira muito ágil de dizer coisas profundíssimas com uma linguagem que toda a gente entende, até o analfabeto do meu avô. As palavras… Eu não sei… Eu comecei por dizer que aquilo que me caracteriza é ser genuíno, ser espontâneo. Eu não cuido do aspecto que as minhas palavras ou os meus actos têm… quer dizer, eu cuido disso, procuro não molestar ninguém, não chocar ninguém, mas ainda assim eu sou espontâneo. E porque sou preocupado com os outros, aquilo que sai espontaneamente, se calhar, já traz essa preocupação. Eu acho que a forma de falar de coisas profundas e difíceis é ser muito, muito terra-a-terra nas palavras, nos conceitos, no pensamento. Não pretendo ser erudito em coisa nenhuma, mas quando eu falo nalguma coisa, quer dizer, é aquilo que eu penso naquele momento, com a noção de que posso estar a milhas de distância de aprofundar as coisas, de levar as coisas até ao fim. Mas é o que eu digo: não é artificialmente cuidada a forma para servir o conteúdo. O conteúdo é este, a forma é esta; quem gosta, gosta, quem não gosta eu vou procurar perceber porquê e no que  quero fazer com isso. Mas isso é depois. Na altura em que quero falar, falo sobre aquilo que a minha alma põe cá fora. 

Joana - Eu acho que é isso que se percebe bem, é aquilo que eu sinto, pelo menos, da beleza do que vai dizendo e em que não está a pensar “vou usar esta palavra ou aquela”, mas essa forma genuína de dizer…

José Afonso - Mas é assim que as pessoas aqui da minha aldeia (não é aldeia, é cidade)… a simplicidade do rosto que eu ainda sou e quero continuar a ser não é necessariamente incompatível com a biblioteca que tenho aqui atrás, com o título académico que tenho. Não, as pessoas falam terra-a-terra. Eu falo aqui com o meu vizinho do lado e do outro lado e com o da frente da mesma forma que falo convosco. E as pessoas percebem-me. Isso para mim faz sentido porque eu não estou a procurar palavras para o coitadinho do meu vizinho entender. Não, ele entende! E se não entende, pergunta. Tão simples como isto. Desse ponto de vista acho que depois as palavras surgem espontaneamente. Por isso é que eu não gosto de falar línguas estrangeiras porque para falar uma língua estrangeira, eu tenho de pensar em português e depois traduzir. Há aqui dois momentos e isto é tramado. Gosto de falar português porque as coisas fluem desde o pensamento à linguagem, como os Piagetianos dizem. 

Ângela - Estava a ouvi-lo e estava a pensar que, inclusivamente os exemplos que o Zé costuma trazer para clarificar as mensagens que nos passa, são muito do dia-a-dia, não são exemplos sofisticados, são sofisticados por serem tão bem encontrados, numa acção simples que qualquer ser humano tem como uma criança pegar numa moeda para ir comprar uma garrafa de água. O que eu vejo de espetacular de cada vez que oiço a Zé a dar exemplos nas interacções que tem connosco é a capacidade de ir buscar exemplos muito simples. Um exemplo do que estou a viver agora, no meu dia-a-dia e traduzir isso para uma aprendizagem mais elaborada, mais sofisticada e que se torna muito simples e muito bonito por isso porque, de repente, qualquer pessoa que esteja na sala compreende exactamente aquilo de que estamos a falar. E eu acho que esse é um saber que o Zé utiliza muito bem e que eu acho que todos identificamos esse lado em si. 

José Afonso - Isto não é saber, é ser. 

Ângela - Pois, e ser não é saber? 

José Afonso - Também lá está alguma coisa, mas eu acho que é diferente, acho que é um patamar acima, talvez, se é que há aqui verticalidade nestas coisas. É outro registo… 

Quando se fala em saber… Eu quando eu fui formado como formador, tive algumas pegas com os formadores porque o que me era pedido era que, artificialmente, moldasse a minha actuação enquanto formador para ser entendido por aqueles destinatários. E eu ficava lixado com isso, desculpem-me a expressão, porque dizia “não me faz sentido! Eu preciso é de falar com as pessoas que estão à minha frente” e partilhar com elas a reflexão que partilharia no café com um amigo, numa conversa longa com um amigo ou uma amiga. Porque o saber não está numa gaveta que se abre, o saber vive em nós; não sei se vive em nós, mas está dentro daquilo que eu penso, daquilo que eu digo e daquilo que eu faço. Portanto, esta tendência para formatar o meu discurso para um determinado discurso, para mim nunca resultou bem. As coisas, por mais sofisticadas que sejam, são tão simples todas, nós é que temos a mania de complexificar tudo. É assim que eu sinto as coisas. 

Eu lembro-me de uma coisa, se calhar eu já vos contei. O meu pai tinha 87 anos quando, pela primeira vez, começou a fazer processamento de texto num computador. Ele nunca tinha trabalhado num texto, nem numa máquina de escrever, não era analfabeto, mas andava a escrever a história da sua vida à mão num livro enorme, igual aos livros que ele tinha quando era alfaiate, um livro com muitas linhas. E um dia desabafou que se tinha esquecido de um trecho, um pedaço de história entre o nascimento de um dos meus irmãos e o nascimento do outro e que, então, tinha de reescrever a história toda, tinha de comprar novo livro, etc. E eu pensei “vamos pôr este homem a aprender a processar texto e, já que tem de reescrever a história da sua vida, usar um processador de texto”. E assim fez: até três meses antes da morte, todos os dias escrevia um bocadinho daquilo que passou a ser um diário, já não era a história, que deixou e nós encadernámos para os vindouros. Mas, é complicado… Normalmente, as pessoas diziam, noutros tempos, quando a informática de utilizador passou a estar assim acessível “Epá! Isto não é para esta gente esta gente já não consegue…”. Não conseguem?! Mas quem é que disse? 

Aliás, lembro-me de uma cena, com uma colaboradora minha. Eu tinha duas economistas, uma das quais rejeitou até ao fim da sua vida trabalhar com informática. Saiu da minha equipa porque eu a pressionava, eu diria tão desalmadamente, que a determinada altura eu lhes dizia “vocês não me trazem nem mais umas contas sem serem feitas no computador”. Descobri que elas faziam as contas com a máquina de calcular e depois digitavam para o computador as parcelas e os resultados. E descobri porque olhei para os resultados e descobri que uma soma estava mal feita e minha ingenuidade levou-me a dizer “olha, o computador deve estar estragado, vamos ter de ver isso! Então mostrem-me lá como é que fizeram”. E elas mostraram-me e ficaram embaraçadas porque o que elas estavam a fazer era o que faziam antes e depois digitavam. Mas, as pessoas todas são capazes de aprender tudo. Isto é muito skinneriano, se calhar é excessivo, eu não quero ir tão longe absolutizando este princípio, mas dá-me jeito agarrar-me a esta bengala para, quando encaro um homem de 87 anos que está infeliz porque tem de escrever à mão tudo e ainda corre o risco de se esquecer de escrever alguma coisa, pôr-lhe uma ferramenta nas mãos e acreditar que ele vai ser capaz. Na minha família ninguém acreditava, ele próprio não acreditava, ao fim de dois meses já a história ia a meio. 

Ângela - Pensando agora assim um pouco em futuro, pensando nas mudanças que estamos a viver agora neste contexto, como é que o Zé vê estas mudanças no mundo do trabalho. Estas mudanças que estamos a viver, obviamente, refiro-me à pandemia, não é? 

José Afonso - Há quarenta e tal anos, talvez trinta e tal, não tenho bem a certeza das datas, houve uma empresa francesa que tentou pôr em prática o processo de teletrabalho, que nem era necessariamente em casa de cada um, mas centros de teletrabalho disseminados em Bordéus para evitar que houvesse cerca de 1200 trabalhadores a deslocarem-se diariamente da periferia de Bordéus para dentro. E o projecto foi um flop, uma falha pelo menos nos anos iniciais, por rejeição liminar de sindicatos, dirigentes da empresa porque se considerava impensável que as pessoas pudessem trabalhar naquelas condições, por diversas razões que não vêm agora ao caso. 

Eu sempre achei que isto era um disparate monstruoso, que isto era tentar parar o vento e não se pára o vento, o futuro era o teletrabalho. Naquele tempo, o grande projecto de desenvolvimento da tecnologia de informação em França, com uma coisa chamada Minitel, estava na crista da onda da tecnologia a nível mundial. E, portanto, até os franceses estavam um pouco preparados para isso, já tiravam os bilhetes para o cinema no Minitel, já faziam umas coisas e, ainda assim, foi o desastre que foi. Mas, a verdade é que o ano passado, no espaço de quinze dias, de uma coisa que toda a gente rejeitava mesmo em Portugal, e eu sei do que é que estou a falar, pelas empresas por onde andei, quer como trabalhador, quer como consultor, apontava possibilidades imensas de teletrabalho, de teleformação e as pessoas rejeitavam e, de repente, em duas semanas vimos o país campeão do teletrabalho. Na televisão, os políticos, toda a gente já falava em teletrabalho como se fosse a coisa mais natural do mundo. 

O que é que eu quero dizer com isto em relação à sua questão? É que eu acho que o ser humano é de uma plasticidade  inimaginável, ou melhor, imaginável para quem se quer colocar na postura do que é possível. Mas eu diria que não vai mudar assim tanta coisa, vamos continuar a ter trabalho presencial, continuar a ter equipas que de vez em quando se reúnem, vamos continuar a usar do teletrabalho como forma expedita de economizar tudo - desde a energia, às deslocações, aos tempos perdidos - e vamos conseguir compaginar tudo isto equilibradamente numa vida que não há-de ser muito diferente. Eu espero estar cá daqui a 10 anos e rir-me à gargalhada desta pergunta, Ângela. Acho que vai ser igual, vai ser igual não, mas o ser humano vai encontrar… isto é como as placas tectónicas que têm movimento e depois há um abalo - e nós sofremos agora um grande abalo - daqui a três anos estaremos a recordar. Eu só tenho pena de que sejam precisos os murros no estômago para mudarmos aquilo que é óbvio que vai ter de mudar. Há 10 anos, há 20 anos já se sabia que tinha de mudar muita coisa. Quando a gente pensa no custo que é uma reunião em Genebra para, durante duas horas, estar sentado a uma mesa, falar durante 5 minutos, cumprimentar as pessoas a correr, e regressar para o aeroporto; e pensar que na maioria das vezes nessas reuniões à distância permitiriam exactamente o mesmo. É preciso o abanão para nós acreditarmos nisso. Então que venha o abanão! Não é que venha a pandemia, que me está a lixar a vida que não vejo a minha família há montes de tempo, conheci finalmente a minha neta recém nascida porque as minhas filhas vieram no dia do pai as duas cá com a neta mostrar-ma. Não é a pandemia que é bem-vinda, mas o ser humano às vezes precisa de abanões e às vezes acontecem. Mas daqui a dois anos estaremos todos felizes da vida num novo enquadramento. 

Ângela - Na perspectiva das interacções, nomeadamente em questões mais deste trabalho que requer, porventura, uma maior proximidade física, estou a dizer “porventura” porque não sei se é necessário, como é que o Zé vê esse tipo de interacções no futuro? Sobre continuar a ser assim virtual ou acha que há áreas em que se ganha muito em ser presencial? 

José Afonso - Espere aí! Eu quero acompanhar a vida dos meus netos presencialmente e, daqui a um ano, se me dizem que vamos estar com imunidade de grupo e vacinas e “milagres”, eu acho que, daqui a três anos, vamos estar aos abraços e aos beijinhos naturalmente. Não me passa pela cabeça que não seja assim. 

Há 102 anos aqui, na zona onde eu estou, morreram largas dezenas de milhar de pessoas por causa de uma pandemia bem mais violenta. E os meus pais devem-se ter beijado e eu nasci. Ou seja, vamos lá ver, a “teleinteracção” é um instrumento como outro qualquer. Mas não substitui, naturalmente, o toque. No relacionamento mais de apoio, de ajuda, eu continuo a defender que isso aconteça no contacto de proximidade. Não tenho grandes dúvidas. 

Aliás, eu fui dos que demorou mais tempo, há muitos anos, a interiorizar a ideia de que era possível fazer coaching por telefone ou videoconferência. Tive alguma relutância mas quando, pela primeira vez, teve de ser, cá está, a necessidade obriga, eu fiz isso pensando “vamos ver o que é que isto pode trazer de aprendizagem”. E trouxe. Eu fiquei bastante mais convencido se me disserem um processo de coaching de A a Z feito por teleconferência é o ideal? Não é, nem vai ser assim, creio eu. As aulas vão voltar a ser presenciais, talvez não todas, podemos fazer um mix, porque não?

Ângela - Eu estava precisamente a pensar que, mesmo em termos da mobilidade e da internacionalização, nomeadamente nas universidades, procurando a diversidade cultural e de experiências com alunos estrangeiros, este contexto veio facilitar e reduzir custos. Claro que se perde uma dimensão grande da interacção e da experiência vivida no país para onde nos deslocamos. Ganha-se outras coisas mas, porventura, pode-se fazer aqui uma relação mais equilibrada. 

É quase meio dia, Zé. Passou muito depressa! Eu gostava que o Zé também nos falasse sobre o balanço que faz desta colaboração que tem tido connosco e como é que nos viu ao longo deste tempo, que evolução viu em nós? O que gostava de nos dizer sobre nós? 

José Afonso - Vamos lá ver, é relativamente simples e disse-o de uma maneira implícita, sinto que o meu tempo chegou ao fim, neste sentido, o meu tempo de presença e de utilidade sobretudo à formação. Eu sinto que vocês têm hoje nas vossas aulas, nos vossos cursos gente com um patamar de base de partida espectacularmente mais elevado do que eu tive na minha geração, no meu tempo e do que a própria Escola (Escola Europeia de Coaching, agora Way Beyond) tinha quando arrancou. Portanto, eu acho que tem sido, para mim, fascinante, se quiser, acompanhar-vos. Quer dizer, hoje um curso de Nível Avançado é dado a alunos que na primeira aula estão num patamar de reflexão sobre si próprios muitíssimo mais evoluído, mais aprofundado, mais reflectido do que estavam há 10 anos quando a Escola fez os primeiros cursos. E o facto de a Escola ter conseguido evoluir de tal maneira que acompanhou o desenvolvimento do público-alvo e continua a ser a resposta para esse público-alvo, para mim é um sinal muito positivo na evolução verificada. A Escola não estagnou com os seus fundadores nem nos paradigma de abordagem do início da sua própria existência e foi sendo capaz de crescer, através da renovação interna, da aprendizagem que cada uma de nós foi fazendo ao longo do tempo. A energia com que eu vos vejo, o entusiasmo, a entrega individual ao projecto acho que é o melhor sinal de imortalidade da Way Beyond, pelo menos, da longa vida que é possível imaginar porque não sei se há eternidade. Acho que a Escola, vocês, eu também - acho que enquanto estive a 100% acompanhei esse crescimento, também contribuí para que esse acompanhamento da realidade fosse conseguido - é também por isso que eu entendi chegado o momento de me retirar um pouco porque já não sou capaz de dar o corpo e a alma da maneira como fui dando ao longo destes anos. Isso representa apenas um cenário diferente para mim mas acho que o caminho está bem conseguido. 

Eu escrevia no outro dia, nuns comentários que vocês me pediram para uma reunião, aquela frase do Kurt Lewin “nada mais prático do que uma boa teoria” e acho que o grande desafio que vocês têm conseguido, não digo vencer totalmente porque acho que esse desafio nunca se vence, mas têm conseguido a flutuação sobre a onda, que é exactamente procurar equilibrar a teoria e a prática de maneira bastante bem conseguida. E isso é o que eu acho que me marca mais! 

Ângela - Eu tenho uma última pergunta: reconhecendo-o como uma das pessoas mais correctas e sábias com quem tivemos e temos o gosto de aprender e de trabalhar, assumindo que são características escassas ou, pelo menos, difíceis de encontrar, o que sugere o Zé para que as pessoas se tornem mais correctas umas com as outras, com o planeta, com o mundo? 

José Afonso - Se cada um de nós conseguir reforçar a pitada de aceitação do outro que já , traz na origem… O ser melhor pessoa é concordar consigo ou convosco? Não! É aceitar! Eu nisso sou extremamente persistente, ao ponto de até me considerar teimoso chatarrão, às vezes: quando eu tenho convicções profundas, defendo-as genuinamente. Mas sempre com a noção de que… é o resultado da minha trilogia - ver, julgar, agir - e quando pronuncio palavras estou a agir, a pôr cá fora pensamentos que resultam desta trilogia e estou sempre a puxar as orelhas a mim próprio porque vou ter de validar… Ou seja, esta coisa de aceitação, e nós trabalhamos esta distinção, não é concordar com nada é, apenas, aceitar o outro, é reconhecer a legitimidade do outro como um ser tanto quanto eu quero ver reconhecida a minha legitimidade. 

Eu acho que se nós começarmos a aceitar-nos a nós próprios e, por essa via, reforçarmos a aceitação dos outros e não ver na aceitação dos outros diminuição da aceitação a nós próprios, se nós conseguirmos viver com o outro, eu acho que isso é meio caminho andado para que o mundo seja diferente a todos os níveis. 

Falámos há bocado de um mundo melhor: nós desperdiçamos brutalidades em todas as coisas possíveis e imaginárias. A reunião que se faz em Genebra ou Bruxelas ou Londres que me permite ter duas horas numa mesa com pessoas, que obrigou a deslocar-me durante praticamente o dia todo… Para quê? Se nós conseguirmos encontrar, também do ponto de vista prático, formas de viver bem com a aceitação de nós próprios e com autenticidade daquilo que procuramos… Vou-vos dar um exemplo pessoal, que me envergonha um bocadinho mas como não se nota que estou corado avanço, mas eu, durante as últimas décadas tive carros de empresas, eu trocava de carro de três em três anos. Isto faz sentido?! O último carro que tive, tive-o durante 12 anos e, quando o vendi, foi porque já não me estava a dar a garantia de confiança de que eu precisava. Ou seja, no passado, eu teria tido 4 carros. Isto faz sentido?! Eu acho que isto está muito ligado à pergunta sobre o que é que eu preciso para ser feliz. É preciso ter um carro de três em três anos novo? Ter uma casa com três piscinas e desejar mais uma porque as estações são quatro?!

A história do ter, a história do ser, centrarmos os nossos esforços no ser - ser uma pessoa melhor, ser um marido melhor, ser uma esposa melhor, um vizinho melhor - no fundo, voltar um bocadinho às origens da vida em comunidade. O aldeão, das duas uma, ou corta a cabeça ao vizinho que o roubou ou então é amigo dele. Não pode ser o tudo ou nada, podemos burilar esse cenário, podemos dar aí umas ajudas, procurando que se aceite melhor o outro. Mas essa genuinidade é o caminho para nos levar a um mundo mais tranquilizador para o futuro, é isso que eu desejo para os meus netos. 

Joana - É essa a minha pergunta: o que é que o Zé quer deixar cá? No fundo, foi a última pergunta que fizemos quando estivemos a última vez? Como gostaria de ser visto pelos seus netos que são, porventura, as pessoas de quem o Zé fala mais?

José Afonso - Passo a imodéstia mas gostaria que os meus netos recordassem o avô como o homem mais sábio que encontraram na vida. Isto é um bocado mania da minha parte. Estou a brincar. Eu acho que o homem mais sábio que eu conheci, verdadeiramente, foi o meu avô porque o admiro muito. O que é que eu queria? Queria que as pessoas reconhecessem no avô que tiveram, no colega que tiveram ou no amigo que tiveram que nunca quis fazer mal a ninguém, que sempre agiu procurando não fazer sofrer os outros, às vezes sofrendo um bocadinho mais do que poderia sofrer. A ideia de que tudo o que aquele tipo fez não foi com o objetivo de magoar ninguém ou de ferir ninguém, às vezes foi inábil a transmitir as coisas, às vezes não foi justo no juízo. Mas alguém que procurou sempre não desrespeitar ninguém. 

Joana - É o Zé! 

Ângela - Pois é, é o Zé! Daqui a 10 anos podemos ter outra conversa como esta! 

José Afonso - E porque não? 

Ângela - Zé, muito obrigada! Foi um gosto enorme estar aqui a conversar consigo. Até breve!

Caso prefira escutar em vez de ler pode fazê-lo aqui.

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